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Crônica da semana

A visão ignorada do mundo

Arte e religião como amparos vitais no mundo

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Apoderou-se da direção social um tipo de homem ao qual não interessam os princípios da civilização”, disse Ortega Y Gasset, no clássico A rebelião das Massas. Talvez essa revolta contra tudo que é elevado tenha alcançado seu máximo aqui no Brasil. Há um prazer escondido em desmerecer tudo o que é muito maior do que nós. Dá uma falsa impressão de desapego, de leveza. No geral, a cosmovisão do brasileiro é a de um Mc de Ribeirão Pires. Por todo o lado, o que se vê é um profundo desprezo pela história sutil do homem, da sua relação com Deus e com o seu próprio passado.

Compreender o que está além da aspereza do cotidiano, do ameno deslizar das horas consumidas sem critério, nos obriga a um mergulho profundo dentro de nós mesmos e isso é tudo o que o brasileiro não quer. Como não quer nada que lhe custe um grande esforço mental. O que o move é riso banal, a diversão dominical capenga no sofá da sala, no bar badalado. É o futebol e suas mesas redondas, são as matérias idiotizadas dos jornais. A alegria, claro, é parte essencial da vida, mas num sentido mais escavado é o sofrimento que despeja sentido nela, porque talha nossa alma.

E nossa alma é talhada quando compreendemos o sofrimento no mundo, não necessariamente no nosso mundo, não o nosso sofrimento. Nossa percepção tem poucos recursos para alcançar a realidade de tudo. Para nos aproximarmos dela, precisamos de apoios vitais. A religião e a arte são os maiores apoios que nossa alma pode ter: a religião nos coloca diante da realidade vertical e a arte, da realidade horizontal. 

Pela religião vemos nossa pequenez diante do mistério da vida e pela arte vemos nossa grandeza. Entrar em sintonia com a criação divina nos coloca em contato com algo que nos transcende infinitamente e, percebendo isso, nos damos conta do quanto somos pequenos. Entrar em sintonia com a criação humana nos coloca diante de nós mesmos, de nossos mais elaborados tormentos, do nosso desamparo primordial, de como estruturamos nosso redor a fim de torná-lo seguro e, percebendo isso, nos damos conta do quanto somos grandes. 

A destruição de uma sociedade depende de como seus homens mais influentes lidam, sobretudo, com esses dois apoios. E a conclusão é até óbvia: essas dimensões passam a léguas de distância da nossa elite falante. Perdendo a religião de vista, perdemos o nosso espírito e sem espírito, mal percebemos o que é o fato artístico. Daí surgem todos os absurdos que vemos no nosso dia a dia: o ânus como expressão libertadora da fusão entre o capital e a opressão, só para ficar num exemplo simples.

O fazer artístico reduz-se aos imperativos do corpo e do instinto, sem diálogo com outras obras, com outros mundos. Porque o que, enfim, se faz é responder às categorizações do homem: hétero, negro, rico, pobre… A dimensão humana da arte decai.

Não há volúpia que se aproxime da criação intelectual, e não há tristeza que se compare ao estado em que o artista mergulha depois de concluída a obra”, disse Karl Kraus. Porque o artista sabe que esse refúgio de perfeição ideal é transitório. O efêmero acampamento de uma aflição, segundo Gustavo Corção. Uma vez terminada a obra é preciso retornar ao mundo, à imperfeição. 

Mas voltemos a nossa mundivisão de pote de achocolatado. A ideia de elevação é ignorada. A luta do homem se passa dentro dele. Há uma frase do Louis Lavelle que me foge, mas que diz mais ou menos: a grande luta, a mais bela luta é a que se passa dentro de nós mesmos. Como não temos e não buscamos os instrumentos para compreender essa luta, damos braçadas no raso. Não querer chegar com uma roupa amarrotada numa festa é só a camada superficial de um anseio profundo por aceitação; colocar-se acima das discussões políticas como se estivesse vendo tudo por um prisma superior e luminoso é só a manifestação pueril de uma vaidade brutal. 

Preservamos o amor, mas não o que acontece no amor; queremos a alegria, mas não a percebemos quando acontece. Cioran diz que profanamos as coisas que nascem e morrem sob o sol, salvo o sol. Sem os apoios da religião e da arte, somos reféns do cinismo. Sem os mais de dois mil e quinhentos anos de ferozes lutas internas, da maturação espiritual de homens que deram tudo para avançar um pouquinho só, a civilização, que é o legado acumulado dessas lutas, seria inviável. O homem moderno, assassino de todo refinamento, dilata o vazio e o adora. É um fanático pelos seus instintos. 

Abandona-se a razão e elege-se o pretexto como senhor do mundo. 

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Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

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