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Direito

Um projeto anticrime para o Foro de São Paulo comemorar

Sob o nome de "pacote anticrime", o monstrengo que sai da Câmara dos Deputados tem toda a ideologia coitadista e anti-prisional do país – só não se preocupa em diminuir o crime

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Pelo menos desde a década de 60, a legislação penal e processual brasileira passa por um contínuo e ininterrupto processo de desmantelamento, afastando-se do Direito natural e da verdade, o qual se acelerou a partir dos anos 80, contaminado por ideologia e pela defesa intransigente e desmedida do criminoso. Foi assim que se chegou a índices de 60 mil homicídios dolosos e de estupros e a milhões de roubos.

Na noite de quarta-feira, 4 de novembro, enquanto nas redes sociais ainda se discutia o depoimento da deputada Joice Hasselmann na CPMI das Fake News, a Câmara de Deputados se reuniu para votar um pacote de reforma legislativa tão aguardado pela população, que ficou conhecido como Pacote Anticrime.

Inicialmente, vale ressaltar que as propostas de alterações legislativas apresentadas ao Congresso pelo ministro  Sérgio Moro foram reunidas ao projeto assinado pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, de maneira que passaram a tramitar conjuntamente. Numa análise superficial, o que se verifica é que foi aprovado um mix entre os dois projetos e alguns outros que já tramitavam na casa, ignorando-se alguns pontos nevrálgicos do projeto Sérgio Moro, como aquele que prevê a possibilidade de prisão automática após condenação em segunda instância e a legítima defesa do policial.

É de se observar que o projeto do ministro Moro já não era um primor para o combate ao crime, pois deixava de abordar questões importantes como as regras de  progressão de regime, imprescindíveis para dar uma guinada no cumprimento de pena. Além disso, previa o acordo penal, instituto novo por meio do qual se permite que o Ministério Público faça acordo com criminosos, reincidentes ou não, em quaisquer tipos de crime, de maneira que, a grosso modo, cumpra apenas parte da pena em troca de confissão.  

Esperava-se mais dessas alterações legislativas. Não há nada a comemorar. Impossível abordar todos os aspectos do projeto que agora segue para o Senado, no entanto, vamos apontar algumas alterações negativas e outras aparentemente positivas, mas que nada mais são do que um passo adiante no processo de desmantelado em curso, que nos leva rumo ao abismo.

Pois bem, uma das mudanças aprovadas é que, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, antes de decidir sobre medidas cautelares, o juiz deverá ouvir previamente a pessoa investigada. Nessas medidas está incluída a prisão preventiva, portanto abre-se a possibilidade de um juiz intimar o investigado para ele se manifestar sobre a sua prisão antes mesmo de ser decretada, o que tira o elemento surpresa da prisão, dando tempo ao criminoso para fugir.

É a janela de Overton se movimentando em prol do criminoso, pois se começa com uma possibilidade para chegar ao direito subjetivo e inquestionável do investigado.

O juiz ainda deverá seguir decisões de tribunais superiores invocados pela defesa, a menos que demonstre cabalmente na fundamentação a existência de distinção entre o precedente e o caso em julgamento, ou seja, praticamente acabando com a independência funcional do juiz, vinculando a sua decisão, em última análise, ao entendimento do STJ e do STF. O juiz não passará de um robô.

Além disso, são tantos obstáculos a serem ultrapassados pelo juiz em sua decisão que deferir a prisão, que será quase impossível vencê-los e ainda evitar uma imputação de crime de abuso de autoridade. Se vencidos esses obstáculos, a prisão preventiva decretada deverá ser revista a cada 90 dias, sob pena de se tornar ilegal. 

A audiência de custódia que tem sido objeto de indignação e revolta, que existe atualmente por força de liminar do STF, na ADPF 347, proposta pelo PSOL, e pela Resolução do 213, de 2015, do Conselho Nacional de Justiça, está prevista no projeto e deverá ser realizada em no máximo 24 horas após a prisão, sob pena desta ser relaxada e da autoridade responsável pela não realização do ato ser responsabilizada administrativa, civil e penalmente.

Para a fase pré-processual, ou seja, a fase de investigação, foi criada a figura do juiz de garantias, que acompanhará as investigações, analisará os pedidos de medidas cautelares, realizará a audiência de custódia, etc. e que não poderá atuar na fase processual, sob pena de nulidade do processo, ou seja, entre outros problemas além da evidente situação de suspensão que se coloca sobre a figura do juiz, isso levará necessariamente a um aumento da estrutura burocrática, com maior custo ao contribuinte, sempre com o fim de proteger sua excelência o réu.

O arquivamento de inquérito policial, que atualmente é homologado pelo juiz, deverá ser homologado por uma instância de revisão ministerial do Ministério Público, devendo ser intimada a vítima, o investigado, e a autoridade policial. Havendo discordância da vítima, ela poderá solicitar revisão do arquivamento a essa mesma instância de revisão ministerial (possivelmente o Conselho Superior do MP, que no Paraná é composto por 9 Procuradores de Justiça). Novamente, a lei cria uma situação que levará necessariamente ao aumento da burocracia estatal.

Expandindo as hipóteses de medidas alternativas, garantia certa de impunidade, o texto contempla o acordo de não-persecução penal, adotando fórmula criada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, por meio da Resolução 181, de 2017, ou seja, mais acordo com criminoso, no qual só ele tem vantagens.

Importante esclarecer que uma das justificativas para esses acordos é a imposição imediata de reparação do dano causado à vítima, no entanto, poucas vezes se vê algum criminoso, ainda que condenado, ressarcir a vítima, pois eles são sempre “pobres vítimas da sociedade”, sem emprego, sem renda, de modo que são isentos até mesmo pagar as penas de multa ou elas prescrevem.

A questão da prisão para cumprimento de pena “foi resolvida” com a manutenção da previsão de que caberá a prisão apenas após o trânsito em julgado, tal como é o desejo do Supremo Tribunal Federal, de modo a manter os criminosos soltos, ainda que sejam condenados confessos.

Aos policiais o projeto concede advogado pago pelo estado em situações de confronto com morte como prêmio de consolação por não ter aprovado a excludente de ilicitude.

Foi prevista a criação de Banco Nacional Multibiométrico e de Impressões Digitais e há previsão de que condenados a certos crimes dolosos e graves serão submetidos à identificação de perfil genético, mediante extração do DNA. Se inicialmente essas medidas parecem boas como auxílio na identificação de criminosos, parece-me, por outro lado, a porta aberta para aumento de controle da população pelo Estado. Resta saber se esse é um preço que vale a pena ser pago, em nome de um suposto combate ao crime, em troca da liberdade e privacidade de todos os cidadãos.

Outras medidas, aparentemente boas, dependem de situações que não foram aprovadas para que tenham algum resultado, ou seja, trata-se de uma vitória de Pirro. Está prevista a possibilidade de prisão imediata em caso de condenação por homicídio, mas apenas se a pena for igual ou superior a 15 anos. Ademais, obviamente a própria lei traz exceções.

Houve ampliação do rol de crimes hediondos, como roubo com emprego arma de fogo, com emprego de armas de uso restrito ou proibido, furtos com explosivos, geralmente praticados em furtos de agências bancárias e caixas eletrônicos, o que é relevante para aumentar o tempo de cumprimento de pena desses certos crimes. No entanto, deixa de ser crime hediondo o tráfico de drogas praticado por réu primário, sem antecedentes, e que não integre organizações criminosas, que já tinha pena reduzida e uma série de privilégios obtidos por meio de ativismo judicial.

Aumentou-se também a pena para algumas condutas relacionadas a armas de fogo de uso proibido, geralmente usadas por membros de organizações criminosas, e que também se tornaram crimes hediondos, como já mencionado.

Importante mencionar que foram estabelecidos novos percentuais de cumprimento de pena exigidos para a obtenção de progressão de regime, partindo de 16% (a regra geral atual de um sexto) para réu primário condenado por crime sem violência ou grave ameaça, chegando a 70% para o réu reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado em morte, daí a relevância do aumento do rol de crimes hediondos. Além disso, também há previsão de impedimento de saída temporária para condenados apenas a crimes hediondos com morte. Assim, estuprador, narcotraficante, ladrão etc continuarão passeando normalmente nas famosas saidinhas.

Para alcançar as organizações criminosas, regulamentou-se o regime disciplinar diferenciado para condenados que praticarem falta grave ou que representem risco para a ordem e segurança do estabelecimento prisional ou para a sociedade, ou que tenham vínculos com organizações criminosas ou milícias, limitando direitos a esses condenados, tal como permitir visitas apenas quinzenais e sem contato físico, com conversas gravadas, mediante ordem judicial.

As lideranças das organizações criminosas ainda deverão iniciar o cumprimento de pena em estabelecimentos penais de segurança máxima. E, havendo prova de vínculo associativo, não haverá possibilidade de progressão de regime ou livramento condicional.

Ocorre que tudo que se refere a endurecimento de cumprimento de pena está sujeito inicialmente à prévia prisão do criminoso, o que raramente ocorrerá diante da quase impossibilidade de decretar prisão preventiva e da impossibilidade de prisão para cumprimento de pena antes do trânsito em julgado. Logo, o que quer que haja de bom nesse pacote de medidas, nada representa na prática, pois os membros de organizações criminosas e os corruptos têm dinheiro e poder para prolongar o andamento do processo até o Supremo Tribunal Federal, e daí para a prescrição.  

O que se vê com esse pacote aprovado pelos deputados é uma série de medidas que rebaixam o magistrado, prestigiam a Defensoria Pública, concedem mais garantias para os criminosos, aumentam a burocracia estatal e colocam maior controle sobre as polícias e sobre o Ministério Público. É a repetição da distorção que aconteceu com as “Dez medidas contra a corrupção”.  

Tudo isso aliado ao incremento da justiça negociada  princípio destrutivo da justiça penal que já se impõe desde a discussão da reforma do Judiciário que se iniciou em 92, pelo PT e demais partidos de esquerda –, passando pela Lei 9.099/95, conclui-se que este projeto deve estar sendo comemorado pelo Foro de São Paulo e o fato de vários deputados de esquerda terem votado contra não passa mesmo de mis-en-scène. Agora, aguardemos para ver o que sai do Senado.

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Assuntos:
Claudia Piovezan

Paranaense, casada, deformada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina; Master of Laws pela Universidade da Flórida; Promotora de Justiça Criminal desde o tempo do onça.

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