Direito Penal: O pacote anti…gripe
Não se apegue à expressão "Pacote Anticrime". O pacote aprovado pela Câmara é contra tudo o que você esperava
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Em texto publicado aqui no Senso Incomum no dia 10 de dezembro, elogiei os membros do Congresso Nacional que apresentaram propostas legislativas que visam tornar o Direito Penal mais racional e eficaz. Referia-me, em especial, ao PL 6025/19 (que modifica o sistema recursal) e à PEC 410/18 (que permite a execução da pena após condenação em segunda instância).
Mas o que se viu nos últimos dias foi a aprovação do PL 6341/2019, autointitulado Pacote Anticrime, que está para sanção ou veto do Presidente da República.
Pense no seguinte exemplo: um médico encontra na fila do SUS um paciente diagnosticado com câncer em estágio avançado. Diante disso, ele resolve receitar ao paciente… aspirina C. Isso mesmo: na cabeça do doutor, a aspirina C irá curar o câncer do paciente (ou amenizar um pouco a dor).
O Pacote Anticrime é exatamente isso: um remédio ridículo com ambições impossíveis. De forma geral, não enfrenta o problema da criminalidade, não endurece as penas, não acaba com os benefícios penais e assim por diante.
O Pacote cria a figura do juiz de garantias, ou seja, um juiz presidirá o inquérito policial (este será o tal juiz de garantias) e outro, o processo. Isto é uma excrescência. Em primeiro lugar, não há sinal algum de que os juízes estejam desobedecendo a lei ou os direitos dos indiciados. Em segundo, a Justiça ficará ainda mais cara e burocrática (e talvez mais demorada). Em terceiro, a proposta aprovada proíbe que os autos do inquérito sejam depois apensados ao processo (quer dizer, toda a prova produzida na fase de inquérito será inútil para a ação penal).
O texto aprovado também legaliza e disciplina a audiência de custódia, que foi inventada para evitar a prisão de criminosos (e que é mais uma ideia que só um intelectual moderno poderia nos proporcionar).
Nada diz acerca da prisão em segunda instância.
Outra infeliz novidade é o acordo de não persecução penal. Se for sancionado, o Brasil terá a esdrúxula Lei dos Juizados Especiais Criminais (dedicada aos crimes de pequeno potencial ofensivo), e, para os crimes mais ou menos graves (segundo o critério do legislador), será feita proposta de não persecução penal. Tudo para que ninguém responda ao processo e seja posto imediatamente em liberdade.
Terá direito a este acordo todo aquele que praticar crime sem violência ou ameaça cuja pena mínima seja inferior a 04 anos. Alguns exemplos de crimes que, em tese, possibilitarão o acordo:
1) No Código Penal: crimes culposos (lesão corporal e homicídio, inclusive); induzimento ao suicídio; omissão de socorro com resultado morte; furto qualificado; estelionato; apropriação indébita; receptação; favorecimento à prostituição; promoção de migração ilegal para exploração sexual; abandono intelectual de filho; fraude em concursos públicos; contrabando e descaminho; peculato; corrupção passiva; corrupção ativa e tantos outros.
2) Praticamente todos os crimes previstos na Lei de Licitações (Lei 8666/93) e no Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9503/97), inclusive o racha em via pública.
3) Grande parte dos crimes contra criança e adolescente (incluindo os atos de aliciar e assediar criança com o fim de com ela praticar ato libidinoso; o de simular participação de crianças e adolescentes em cena de sexo explícito ou pornográfica; o de vender arma, munição ou explosivo à criança ou adolescente e o de corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 anos, com ele praticando crimes).
4) Com exceção de um, todos os crimes da Lei de Drogas (tráfico, associação para o tráfico etc.) permitem a celebração do acordo de não persecução penal. Quanto ao tráfico, embora a pena mínima seja de 5 anos, a proposta do pacote determina que seja computado, no cálculo, as causas de aumento e diminuição. Como se tornou praticamente automática a causa de diminuição do art. 33, §4º, sim, o traficante será agraciado com a proposta.
Firmado o acordo, além de sequer se formar o processo criminal, nada constará na certidão de antecedentes criminais do delinquente (ou seja: ele não será reincidente e nem portador de maus antecedentes). E este acordo também poderá ser firmado no âmbito do STF e STJ nos processos de sua competência originária.
Mas a coisa piora.
As regras para a decretação da prisão preventiva inviabilizam a prisão. Pelo Projeto, o juiz não pode mais decretá-la de ofício no curso do processo (depende de pedido do promotor de justiça) e, antes de decretá-la, o réu deve ser intimado para se manifestar no prazo de 05 dias (é isso mesmo: o réu será avisado de que poderá ser preso dentro de alguns dias).
Ainda, a redação sugerida para o art. 315 do Código de Processo Penal (que diz quando a decisão judicial não se considera fundamentada) faz com que toda fundamentação possível e imaginável não seja suficiente para embasar a prisão. E lembro o leitor: se a decisão do juiz que determinou a prisão preventiva for modificada sob o argumento de não estar devidamente fundamentada, o juiz incorrerá, em tese, no crime de abuso de autoridade. O recado é óbvio.
Mas alguns estão dizendo que o Pacotão melhorou a questão da progressão do regime. Então… não é bem assim.
Vamos supor que o réu seja reincidente (ostente condenação por homicídio simples) e venha a ser condenado por tráfico de drogas. Pela regra atual, poderá progredir somente depois de cumprir 3/5 (60%) da pena. Já pelo Projeto poderá progredir após cumprir 30% da pena (sim: o pacote que se diz anticrime, ao prever um escalonamento ridículo para a progressão, permite uma bizarrice dessa).
Outro: o traficante é pego pela primeira vez vendendo pouca quantidade de drogas. Para este crime lhe será concedido o direito de firmar o acordo. Pois bem. Passados alguns meses, ele é pego novamente nas mesmas circunstâncias. Pela lei atual, será reincidente em crime hediondo (e, sendo condenado, sua progressão somente se dará após cumprir 3/5 da pena). Porém, pelo Projeto, o traficante poderá progredir após cumprir 1/6 (16%) da pena, pois o tráfico privilegiado não será mais considerado hediondo para fins de progressão (e a jurisprudência dominante dos tribunais é no sentido de que o tráfico não é crime violento).
Por último: réu que ostente condenação anterior por tráfico privilegiado e é novamente condenado por tráfico (privilegiado ou não). Pela lei atual ele poderá progredir após cumprir 3/5 da pena. Já pela Proposta, será suficiente o cumprimento de 20% da pena.
Pelo Pacote, também, o investigado reincidente e o que indicar participação criminosa habitual poderão se beneficiar do acordo de não persecução penal se as infrações pretéritas forem insignificantes (só faltou combinar com as vítimas o que se deve entender por insignificância).
No fundo, a única alteração positiva (que, diga-se, é pífia) é para o crime praticado por reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, que poderá progredir de regime após cumprir 70% da pena (apenas 10% a mais do montante atual).
A pergunta que deveria ser feita é: qual o sentido de se admitir a progressão de pena? Por que impedir que o criminoso pague integralmente pelo crime que praticou? E seria elogiável uma proposta anticrime que permita ao reincidente em crime hediondo que matou um ser humano progredir de regime? Por que não acabar de uma vez com a progressão de regime, que é motivo de vergonha para o nosso sistema penal?
Segure a raiva e vamos adiante.
A Proposta inclui a qualificadora do homicídio praticado com o emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido (o que, na prática, já ocorre). O problema é que não menciona, de forma expressa, a hipótese de o homicídio ter sido praticado com arma branca (faca, por exemplo), tal como o fez para o crime de roubo. Logo, se o legislador foi expresso neste último mas omisso no primeiro, muitos poderão (com fortes argumentos) interpretar como simples o homicídio praticado com o emprego de arma branca.
Seguindo.
Em virtude do aumento exponencial de assaltos a bancos com o uso de explosivos, a proposta tratou de incluir este crime (furto com explosivos) no rol dos crimes hediondos. Contudo, dando um recado de que o patrimônio do banco vale mais do que a vida de um ser humano (e lembrando que furto algum é praticado mediante violência ou ameaça contra pessoa!), o legislador se esqueceu de endurecer a pena e o regime jurídico do homicídio simples, que segue com uma pena baixíssima e fora do rol dos crimes hediondos.
O projeto, colocando o povo ainda mais de joelhos, inclui o acordo de não persecução civil, feito para levantar a inelegibilidade dos condenados por atos de improbidade administrativa e, assim, permitir que participem das próximas eleições como fichas-limpas.
A única lei que suportou de fato um endurecimento na pena foi o Estatuto do Desarmamento. Aliás, veja que coisa: se alguém, utilizando-se de uma arma de fogo de uso restrito, reagir, em legítima defesa, a uma tentativa de homicídio, de acordo com o Pacote receberá, pelo porte de arma, pena entre 4 e 12 anos de reclusão (art. 16 do Estatuto do Desarmamento), enquanto que a pena daquele que tentou matar o inocente poderá ser fixada entre 2 e 7 anos de reclusão. Que coisa, não?
Alguns estão comemorando o fato de o tempo máximo de cumprimento da pena ter sido elevado de 30 para 40 anos, o que deveria ser motivo de risada em voz alta – e em tom de desprezo absoluto.
Quando a lei impõe um prazo máximo de cumprimento de pena, o que ela faz é tornar impunes outros crimes que o criminoso venha a cometer. Supondo que alguém tenha praticado 3 homicídios e sido condenado à pena de 38 anos. Caso venha a praticar outros 5 homicídios, a Proposta determina que se faça a unificação para que ele permaneça no máximo 40 anos cumprindo pena (ou seja, para estes 5 homicídios, o criminoso cumprirá tão somente 2 anos de pena). Fora que, quando editado o Código Penal atual (na década de 40), a expectativa média de vida do brasileiro era de aproximadamente 45 anos; hoje, beira os 80. Por aí se vê que, na prática, o tempo máximo de cumprimento em relação à expectativa de vida, pelo Pacote Anticrime, diminuiu.
É claro que a Proposta traz algumas coisas boas, mas mesmo estas são difíceis de serem elogiadas com sinceridade.
O projeto veda, por exemplo, a saída temporária para condenados por crime hediondo com resultado morte que cumprem pena no regime semiaberto; também traz maior restrição a visitas de parentes e amigos ao preso em estabelecimento prisional de segurança máxima. Mas é difícil compreender como um condenado por crime hediondo com resultado morte (que já foi agraciado com a progressão para o regime semiaberto) ou que esteja cumprindo pena em presídio de segurança máxima pode ainda ser beneficiado com algum tipo de favor legal… Por que não acabar com as saidinhas e com o imoral direito de receber visita nos presídios de uma vez?
Outras medidas que vêm sendo elogiadas não são inéditas e dispensariam um projeto desta magnitude para serem aperfeiçoadas (é o caso da utilização da ação controlada e da infiltração de agentes policiais). No entanto, mesmo com relação a estas, o Pacote conseguiu atrapalhar o sistema de justiça: no caso de venda ou entrega de drogas para agente policial disfarçado (que por si só já deveria configurar o tráfico ilícito de entorpecentes), a proposta condicionou o crime à presença de elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente, o que dificulta sobremaneira o trabalho de investigação da polícia.
Quanto às alterações na Lei 12850/13, que trata das Organizações Criminosas, se por um lado o pacote prevê que os líderes deverão começar o cumprimento da pena em estabelecimento penal de segurança máxima (o que já é permitido), por outro a vedação à progressão do regime ou a outros benefícios a estes líderes está condicionada à prova da manutenção do vínculo associativo (na prática, a prova do vínculo associativo é extremamente complicada – ainda mais considerando que o líder da organização estará preso e sob a custódia do Estado).
Já as normas processuais aprovadas para a Lei 12850/13 aliviam a vida dos membros das facções. Por exemplo: quando celebram acordo de colaboração premiada, a Proposta proíbe que lhes sejam impostas medidas cautelares reais (sequestro de bens, por exemplo), bem como veda a previsão de renúncia ao direito de impugnar a colaboração firmada, o que traz insegurança jurídica. Também dificulta a infiltração de agentes de polícia nas redes sociais para a apuração de crimes praticados pelas organizações criminosas e, como forma de intimidação, ainda pune o agente policial que deixar de observar a estrita finalidade da investigação.
É impossível considerar decente este Pacote.
Ao Presidente da República, que, mal assessorado, cedeu mais do que devia quando não vetou integralmentea lei do abuso de autoridade, caberá dar a palavra final – e a decisão acerca deste Pacote será crucial para a confiança no Governo na área de segurança pública.
Devemos refletir sobre se o problema maior está no conteúdo do Projeto apresentado ou na mentira que nos foi vendida de que se trata de uma proposta contra o crime (mentira esta que ninguém, nem mesmo os integrantes do Governo, desmentiu ou esclareceu).
Este pacote é contra tudo o que a imensa maioria dos brasileiros deseja e contra tudo o que foi prometido na última eleição presidencial. É, de fato, uma aspirina C fabricada para a cura de um câncer (e aplicada ao paciente com a promessa de cura).
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