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Sobre o #SilenceDay, uma visão pouco ortodoxa

A campanha de boicote às Big Techs precisaria incluir conscientização sobre a censura se quisesse ser efetiva. Apenas se calar é o que censores mais querem

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Neste dia 15 de janeiro criou-se o protesto #SilenceDay. A idéia é passar um dia sem interagir nas redes das Big Techs, as grandes empresas de tecnologia (Facebook, Twitter etc), como protesto contra a censura cada vez mais desabrida a vozes não-progressistas. Meio como um jejum de sexta-feira. Vale algum simbolismo, ok. Mas símbolos precisam de força, coesão, capacidade de apreensão.

Vamos para o subjuntivo: o #SilenceDay valeria como simbolismo, porém, se fizéssemos muitas outras coisas diferentes do que estamos fazendo.

Todo mundo cita a famosa frase de Sun Tzu sem meditar por 2 minutos nela: Conheça o seu inimigo e não terá medo do resultado de mil batalhas. Alguém aí estudou o seu inimigo? Alguém aí estudou algum livro de estratégia, seja militar, seja empresarial, seja de marketing político, seja para atuar nas redes sociais? Pois isto está determinando mais os resultados de nossas ações do que ficar repetindo o que já estamos dizendo há uma década.

Os donos das Big Techs podem não ter cultura clássica, podem não ser modelos de conduta, podem não ler 5 livros por semana, mas eles têm estratégia. Pensaram em algo que as pessoas querem e deram a elas. Em troca, tiveram muito dinheiro, o que é interessante, e muito poder, o que faz todo o dinheiro do mundo parecer irrelevante.

A Amazon deu a melhor logística e colocou tudo no mesmo lugar. O Facebook fez o mesmo com as pessoas – uma rede social onde até a sua tia Neide tem perfil, que só posta foto dos gatos e dos sobrinhos-netos. O Twitter resumindo as conversas urbanas a poucos caracteres – ninguém mais lê algo além de manchetes e todo mundo se acha gênio e está debatendo qual o melhor filósofo e o melhor cientista do século em 280 caracteres. And so on.

O mundo está fichado. Seu quintal está mapeado no Google Earth. Você aparecendo de sutiã (ou sem) na janela foi fotografada no Google Street View. Suas compras têm histórico. Seus sentimentos em relação a políticos, celebridades e idéias estão monitorados por mineração de texto (text minering, google it). E, com isso, as Big Techs têm mais poder factual do que até o presidente da maior potência do planeta (algo que liberais e pessoas que só enxergam poder por esquematismos abstratos nunca irão entender).

Isto significa que o povo das Big Techs (seus fundadores, diretores, o departamento Ministério da Verdade definindo o que pode e o que é “discurso de ódio” aleatoriamente, seguindo “termos de uso” com a mesma clareza das vontades da Rainha de Copas ou de uma repartição pública soviética) tem algo que não temos: estratégia. Criam algo gigante para que você compre o celular tal, com os aplicativos tais, para ter o hábito tal e, sem perceber, compre X, acredite em Y, passe o dia brigando por Z – algo que você não pensava em fazer um dia antes de ter uma rede social.

Neste sentido, adianta fazer um dia de silenciamento nas grandes redes, para alertar as pessoas de que as Big Techs ganharam um poder demasiado, não sonhado por muitos dos últimos ditadores? Ehrr, depende. Alguém aí está mais conscientizado deste problema? Não você, não seu grupo de Zap de 10 pessoas discutindo política o dia inteiro. Alguém fora da sua bolha já está usando termos como “Big Techs” ou sabe o nome do fundador do Twitter?

Estratégia, do grego strategia…

Aí é que entram alguns problemas. Em primeiro lugar, a integral ausência de estratégia. Não de um quid, mas de um quo modo. Não se cria uma coisa dessas, que deveria ser gigante como o #SilenceDay, no atropelo. Ninguém está nem sabendo disso. Pergunte pro motorista do Uber, pro entregador do iFood (!), pro garçom, pra caixa do supermercado. E também pergunte pro médico, pro dono do hotel, pro cara mais rico do seu bairro, mas que não passa o dia inteiro batendo boca no Twitter. Não é questão de classe social.

O impeachment de Gilma Rocefe saiu porque era algo que não dava para não ser noticiado. O que jornalistas mais fazem hoje é noticiar o que saiu no Twitter (antes, a família se reunia na frente da TV às 8h para saber do que aconteceu, e não para saber se o William Bonner iria comentar o que se fez na internet).

A dinâmica da produção de notícias mudou. E a divulgação do #SilenceDay, quase de um dia para o outro, não favoreceu isso. De fato, justamente na época em que passamos a produzir notícias, abdicar-nos de estar na ágora moderna, na praça pública, no centro da discussão em dias de pandemia não é a melhor estratégia para sermos ouvidos.

Poderia ser, se bem divulgado antes. Se incluísse uma campanha para a dona Conceição e o seu Almeida da padaria entenderem que um novo modelo de censura se tornou real, e que a cor da cueca deles já foi transformada em algoritmo (tem que explicar o que é algoritmo). Que eles precisam usar Signal e DuckDuckGo no lugar do Zap e do Google. E assim por diante.

Além disso, sair da internet pode (ou poderia) ser simbólico se algo grandioso fosse colocado no lugar. Isto nos leva a uma dinâmica complexa, sem fórmula pronta, que exige mais instinto, wit e uma inteligência tática, de momento – métis – do que um passo-a-passo: precisamos ir tirando a tia Elza e o seu primo roceiro do Facebook, dando-lhes consciência do quão perigosa à liberdade é a censura a Donald Trump, o auto-intitulado “fact-checking” a la Ministério da Verdade de 1984, a um só tempo em que não adianta fechar a conta e deixar que só “fontes oficiais” e seu primo maconheiro que se acha contra o sistema e só compartilha Folha de S.Paulo dominem o debate no Facebook. É uma dinâmica. É como jogar xadrez com algumas peças andando sozinhas. E não se ganha xadrez no tudo ou nada.

O impeachment da Gilma também aconteceu porque foi constante, e que foi se atualizando (ao menos quando as antas do MBL não resolveram ir andando pra Brasília para poderem passar uns dias sem ter de pensar). Isto é algo que pode vir a ser positivo: o #SilenceDay pode se repetir, ou, o que importa mais, se atualizar: criar novos atos, que, desta vez, venham a paulatinamente virar notícia, conscientizar, trazer o problema da censura Big Tech para o centro do debate. Desta vez não aconteceu. Pode ocorrer, se inventarmos novos modelos. E persistirmos, mesmo que 10 adiram.

Neste momento – do dia para a noite – parar de usar as redes tem como consequência muitas coisas negativas

Os algoritmos das redes entenderão que páginas de direita não têm interação. No sábado, todas elas serão menos mostradas para seu tio que só fala de política e segue todos os jornais do país. O que aparecerá será apenas… os grandes jornais. As outras fontes. Um dia que que só irá recuperar as interações de algoritmo em um mês. Se recuperar. Quem na direita entende de algoritmos? Que sabe que uma pessoa trabalhando com algoritmos influencia absurdamente mais do que 20 trabalhando com conteúdo?

A outra é que a esquerda aproveitou o dia para colocar hashtags como “Impeachment do Bolsonaro urgente” e outras nos Trending Topics sem parar. Pior: entupiram as redes de fake news, como a de que Bolsonaro e deputados “bolsonaristas”, como Bia Kicis, Carla Zambelli e Eduardo Bolsonaro, são culpados pelo caos em Manaus porque foram contra o lockdown (que não evitou mortes em nenhum outro lugar do país – nem na Alemanha, cazzo!).

Ninguém desenterrou a enxurrada de notícias mostrando que o governo federal entupiu o Amazonas de dinheiro, e a miríade de notícias sobre os “desvios” de verbas tomadas de nossos bolsos para salvar vidas (algo que chocaria muita gente nos últimos ciclos do Inferno de Dante). Agências de fact-checking correram para disfarçar que o STF negou a Bolsonaro a gestão da crise, e agora culpa o governo federal e “esconde” os desvios estaduais pela mesma crise.

Celebridades como Felipe Neto e Luciano Huck saíram usando seu extremo poder financeiro para parecerem anjos: “doaram” dinheiro para comprar cilindros de oxigênio. Oh! Fizeram o que nós, os extremistas de direita (e, sobretudo, pobres e ferrados) não fizemos: colocaram a mão no bolso e acharam rios de dinheiro! Doaram 0,0001% e agora parecem as pessoas mais bondosas do planeta Terra (por que não fizeram antes do #SilenceDay?).

Isto é só uma prévia de quando você age sem estratégia, mesmo com muito ímpeto. Imagine campanhas como esta se repetindo: as pessoas normais saberão sobre a nova censura, lutarão como lutaram pelo impeachment da Gilma, ou nós vamos todos ser escorraçados do debate, e além de sermos caluniados, chamados de terraplanistas, anti-científicos e extremistas (ou “bolsonaristas”, como é a última moda)? Fica mais fácil se livrar de nossas vozes desagradáveis.

Para piorar, um protesto precisa indicar força – não diminuí-la de livre vontade. Foi o mote do Occupy Wall Street contra o sistema financeiro – “Nós somos os 99%!”. Foi a Avenida Paulista fechada no impeachment. Etc etc. Nós somos a maioria, e precisamos mostrar que somos a maioria. E que somos fortes.

Um discurso na defensiva, como tem sido aplicado em campanhas contra a censura, pode muitas vezes ter o efeito contrário. Indica a quem está no meio do caminho, a quem não está sabendo de nada – e a quem só quer saber em qual lado investir dinheiro – que, aparentemente, somos a minoria. E somos fracos. Muito ajuda quem não atrapalha.

Se há um hábito que espero que aconteça é que intelectuais passem a ler livros de estratégia, até mesmo de marketing de redes, algoritmos, storytelling, copywriting. São muito mal escritos, eu sei; mas são os livros que explicam como um Felipe Neto tem 40 milhões de seguidores, e nós, que somos geniais, estejamos revirando lata de lixo atrás de comida. Só ser genial não dá mais. E estudamos demais as esferas celestes, enquanto não conseguimos concretizar coisas simples, como uma campanha para explicar que estamos sendo censurados. T. S. Eliot intercalado com storytelling para o Twitter.

Pois precisamos ter a estratégia de um Marco Aurélio, a capacidade de lidar com algoritmos de um gênio da matemática, o copywriting e a capacidade de vender idéias complexas de maneira rápida e agradável de um Duda Mendonça, o manejo de redes da equipe de Relações Públicas de um Felipe Neto, a cultura de um Northrop Frye, a resiliência de um Mohammad Ali, a paciência e continuidade da tartaruga que venceu a lebre na fábula. Se qualquer um desses elementos estiver comprometido, provavelmente vamos falhar. Mas continuo fazendo meu trabalho de formiguinha para meus 7 leitores.


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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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