Da arte sublime à arte degenerada
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Numa sociedade em que, para muitos, a única referência que se tem por “arte” seja abrir o capô do carro, pôr para tocar um funk obsceno em altíssimo volume e encher a cara de cerveja, um mundo de escravos presos aos próprios instintos mais primitivos e à satisfação dos prazeres mais imediatos, torna-se urgente uma enérgica apologia à beleza. A vitória da arte bela perante a arte repugnante será a vitória da sutileza perante a barbárie, será o sussurro sendo ouvido num mundo onde todos gritam.
As mudanças do conceito de arte através da História
“O que é arte?”
Essa é uma questão que sempre acompanhou a Humanidade, tal qual “o que é justiça?”, “qual o sentido da vida?”, “qual a melhor forma de governo?” e outras de fundamental importância em nossa História. As mais antigas pinturas rupestres, datadas de 40 mil anos e um fragmento de flauta de 35 mil anos sugerem que algum tipo de manifestação artística sempre esteve presente na história humana.
Pensadores de períodos e lugares distintos como Platão, Aristóteles, Quintiliano, Kant, Schopenhauer, Baumgarten, Burke, Dewey, Benjamin, Ortega y Gasset, Adorno e Eco refletiram acerca dessa questão e influenciaram a criação artística de sua época e à sua maneira, pois o conceito mesmo de arte foi se transformando com o tempo.
Na Grécia Antiga (aprox. 500 a.C.), a arte era “mímesis“, a imitação da natureza. A arte também já foi relacionada à habilidade técnica de se fazer algo, a chamada tekhné. Um artesão, um sapateiro, um marceneiro, faziam arte. Esteve vinculada, também desde sempre, a funções utilitárias específicas, como comunicação, guerra, educação e ritos religiosos. Chegou a ser – veja que surpreendente – estreitamente ligada ao conceito de beleza e ordem. Mais tarde, no século XVIII, a arte passou a ser o puro deleite estético. Então, no século XIX, surgem as figuras do gênio criador e do virtuose artístico, semideuses iluminados que pairavam acima dos pobres mortais.
Eis que, no século XX, a arte passou a ser definida como qualquer coisa que se queira definir como arte. Ou qualquer coisa que o artista defina como sendo arte. E o artista, nesse caso, pode ser qualquer um que se defina como artista. Em suma, “arte” pode ser qualquer coisa que qualquer um defina assim, independente do trabalho, inspiração, elaboração ou talento dispensado à criação artística. O importante não era o objeto ou obra artística em si, mas a idéia, seu sistema de validação.
E já não bastava à arte ser definida por qualquer um como arte mas, invariavelmente, deveria (deve, ainda hoje, quase um século depois) chocar, deveria trazer em si uma lição ideológica e uma transgressão moral; a arte deveria ser um instrumento revolucionário. E junto a esse fenômeno, evidentemente, veio a ojeriza ao antigo e o conseqüente culto ao novo, ao original (que, de original, quase nunca tem nada).
É na idéia de beleza que encontramos o ponto de ruptura entre todos os conceitos históricos tradicionais de arte e o seu conceito contemporâneo. Da Grécia Antiga ao Romantismo do século XIX, em que pesem as diferentes conceituações do que poderia ser a arte, restava a beleza como fator comum, o equilíbrio formal, a ordem, o primor técnico, a capacidade de se comunicar com o público e ser inteligível a ele.
A nova arte não mais precisava ser bela, profunda, elaborada, inspiradora ou sublime; bastava que fosse chocante, feia e inusitada. O urinol de Duchamp então é considerado arte. Os excrementos enlatados de Piero Manzoni, vendidos recentemente por 124 mil euros, são considerados arte. Borrões ininteligíveis, ruídos, letras sem sentido, objetos disformes, edifícios inabitáveis, tudo isso passa a ser considerado arte.
Foi no século XX, com a ruptura dadaísta e a negação da tradição, que o belo deixou de ser um fator predominante na manifestação artística e passou a ser algo a se evitar, como um vício antiquado, um capricho burguês. A teoria crítica marxista da Escola de Frankfurt, com seu ímpeto de “desconstruir” (um eufemismo para “destruir”), se não foi o estopim para esse novo conceito de arte, pelo menos se encaixou como uma luva nele[1]. O que era para ser destruído a princípio seria a tradição e a beleza. No fim, tudo aquilo que tornava a arte compreensível – ou melhor dizendo: sensível – por qualquer pessoa, letrada ou não – fora destruído.
A arte como agressão (não tão) gratuita
A idéia de que o intuito da arte seja chocar e agredir é uma das grandes falácias da pós-modernidade. As “transgressões” estéticas contidas num Debussy, Monet, Stravinsky, Bartok, Ezra Pound ou Guimarães Rosa vão muito além da superficialidade grotesca, da agressão gratuita, da feiura torpe e demais conceitos revolucionários comprados bovinamente por muitos artistas e acadêmicos contemporâneos.
A arte pós-moderna se transformou em um novo paradigma de uma pseudo-arte que, ironicamente, acabou revelando o horror do mundo atual em sua mais honesta crueza. O problema é que é muito mais fácil e barato ver o horror do mundo simplesmente abrindo as janelas de casa do que freqüentando concertos e exposições. A arte, ao assumir a função de ser um instrumento de confronto cultural do moderno contra a tradição, acabou por se tornar uma caricatura de si mesma e, dessa maneira, no século XX houve, pela primeira vez na História, o fenômeno do enorme distanciamento entre o público e o artista.
Cães agonizantes deixados para morrer de fome, cerimônias de automutilação ou performances onde auto-intitulados “artistas” enfiam crucifixos no ânus são o resultado dessa deturpação do conceito de arte; representam simplesmente o culto ao grotesco. Como em uma drogadicção, os intelectuais acadêmicos (diferentemente do grande público) necessitam de doses cada vez mais fortes de agressão. As latas de excremento já não chocam e “estimulam a crítica social” suficientemente.
Mesmo a transgressão meramente estética já não surte mais efeito (e aí a “arte performática” veio a calhar). É preciso matar animais, expelir tinta da vagina, comer o próprio quadril, realizar rituais com sacrifício de animais, costurar vaginas em público, perder a virgindade anal ao vivo ou simplesmente considerar os atentados terroristas de 11 de setembro, que vitimaram 2977 inocentes, como “a maior obra de arte de todos os tempos”.
Então o feio se torna letal, o senso estético coletivo tem uma overdose de grotesco e a sociedade morre de feiura. Quando tudo pode ser arte, nada é arte.
Essa overdose de feiura não subverte apenas os padrões estéticos da sociedade. Se fosse uma mera questão de mudanças de padrões estéticos não haveria problema algum, a história das artes até o séc. XX é uma seqüência de mudanças de paradigmas sem ônus à sanidade mental de seus apreciadores. O culto ao grotesco da arte pós-moderna é perigoso pois compromete o discernimento moral, banaliza o mal e traz à tona aquilo que o ser humano tem de pior.
A experiência horrível de Dante ao passar pelos círculos do Inferno, as tragédias shakespearianas ou qualquer crime narrado com primor artístico, apesar de ser um relato do caos e do sofrimento da vida humana, é algo que, por força da beleza do próprio objeto artístico, do equilíbrio formal e da carga moral que carrega consigo, transcende a própria torpeza e nos permite um vislumbre de nossa condição humana. “A bela obra de arte traz consolação na tristeza e afirmação na alegria”[2].
Por outro lado, a arte grotesca traz em si apenas o próprio Mal. Não há nenhuma redenção, não há qualquer dilema moral, não há o sublime, nem o transcendental. Há apenas o feio, o grotesco e o mal, envoltos por uma frágil carapuça racionalizada. Toda obra pós-moderna não fala por si só, mas precisa de uma bula, um sistema de validação, uma explicação racional (que, via de regra, extrapola o seu próprio ambiente referencial e representativo) que a justifique. [3]
Essa tragédia social da modernidade contamina todas as formas de expressão artística e, além de corromper as pessoas, é o álibi ideal para a falta de talento, estudo e trabalho. Qualquer imbecil limítrofe pode fazer algo bizarro e alardear-se “artista”, sob o beneplácito da elite bem-pensante e generosas verbas estatais.
A “arte engajada”, ideologizada e “muito além da arte pela arte”, supostamente estimularia a reflexão, o pensamento crítico e a desconstrução de determinados padrões culturais[4]. Porém, em vez disso, ela banaliza o bizarro, transforma a violência pura em valor estético e faz com que seus usuários busquem formas cada vez mais radicais de “desconstrução social”. A arte moderna embrutece o Homem.
A arte vil é uma droga: começa-se usando socialmente um simples urinol de Duchamp numa rodinha de amigos da faculdade, então esse urinol torna-se uma porta de entrada para cada vez mais pesadas doses de feiura. Daí para explorar o oritimbó alheio é um pulo. Quando a família finalmente começa a perceber já é tarde demais e o usuário já está entregue ao próprio vício, apreciando arte invisível ou pior: ouvindo “Putinhas Aborteiras”. Quando se chega a esse estágio, as chances de recuperação são extremamente remotas. O pós-modernismo é o crack da Estética.
E o que pode advir disso? Quem sabe um assassinato real seria suficientemente revolucionário? Um estupro, artisticamente provocador? Uma tortura, esteticamente elogiada[5]? Ou, na melhor das hipóteses, a mera pseudo-arte ruim e caricata, como uma louca berrando num microfone ou um doente dançando seminu com um galo amarrado ao próprio pênis. Invariavelmente, essa arte degenerada, seja pela pretensa dificuldade conceitual contida em seus sistemas de validação, seja pela pura e simples infâmia, acaba distanciando o público cada vez mais das salas de concerto e exposições, tornando-o insensível, arrogante e grosseiro.
Acontece que há uma instintiva aversão do público não-lobotomizado às abominações da arte pós-moderna. Assim, o artista revolucionário, apesar de paparicado pela intelligentsia, não consegue se manter com o fruto de suas obras e acaba ingressando na carreira acadêmica onde, sob o abrigo de algum cargo vitalício, segue doutrinando outros incautos, agora com autoridade professoral, mantendo assim o culto ao feio na crista da onda entre a beautiful people universitária[6]. Simultaneamente, o artista pós-moderno necessita cada vez mais de financiamento estatal para subsistir, num círculo vicioso no qual o pobre paga por uma arte que não viu e não gostou e também paga os salários desses professores ricos que formarão outros artistas ricos financiados por dinheiro de impostos e assim por diante.
Uma outra faceta sórdida da arte contemporânea é a facilidade com a qual pode servir de fachada para a lavagem de dinheiro do crime organizado. É óbvio para qualquer um o valor inerente a um “Davi” ou aos afrescos da Capela Sistina. Em contrapartida, o que faz uma tela azul com uma faixa branca no meio ser vendida por 44 milhões de dólares (cerca de 173 milhões de reais) são avaliações extremamente subjetivas e intangíveis, que servem perfeitamente para que uma organização criminosa qualquer, em conluio com galerias e críticos, aja de modo a trazer à legalidade centenas milhões de dólares quase sem despertar suspeitas.
Vencendo o medo da patrulha
A maior arma que os adeptos da arte contemporânea usam é a vergonha. É feio dizer que a arte moderna é feia. Quem quer que afirme isso será tachado de estúpido, alguém que não compreendeu a profundidade dessa arte tão revolucionária, tão inteligente, sobre a qual as pessoas modernas e descoladas discutem menos nas universidades do que nos bares da Vila Madalena[7].
Para quebrar essa barreira – que é uma barreira psicológica e tanto – devemos ser tão honestos quanto a faxineira que jogou uma “obra de arte” no lixo ou como nossos avós, que vêem uma obra de arte moderna e dizem que uma criança poderia fazer aquilo.
Há um século o mundo está repleto de maldade e feiura. Foi no século XX que vigoraram os regimes mais genocidas da História, particularmente o comunismo e o nacional-socialismo, que vitimaram mais de 110 milhões de inocentes em poucas décadas. Nunca se matou tanto. Faz um certo sentido observar que a arte produzida nesse período seja torpe, feia e degenerada, como um retrato de seu tempo. O que não dá para aceitar é que seus ditames ainda sejam aceitos como definitivos e imunes à crítica. É inaceitável que o culto ao grotesco seja ainda incentivado nas universidades, paparicado pela elite política e financiado pelos pagadores de impostos.
Se o mundo grassa em feiura e essa feiura corrompe a sociedade, somente a beleza poderá nos salvar. Trazer o público de volta às exposições e salas de concerto é urgente para que possa haver o crucial resgate de nossa essência humana, numa sociedade na qual as pessoas estão presas exclusivamente aos seus instintos mais primitivos e animalescos. À dessensibilização em massa promovida pela mentalidade revolucionária na estética contemporânea só resta uma terapia: a remição da beleza.
A pergunta feita no início, “o que é a arte?” nunca será definitivamente respondida, tal é a riqueza e complexidade da longa saga do ser humano através do espaço e tempo. Talvez essa resposta possa abranger não só uma definição, mas um conjunto de fatores somados que caracterizem uma obra de arte, tais como a beleza, a criatividade, o trabalho demandado, a complexidade[8], a coesão formal, a harmonia, a ordem, o talento, a profundidade, a sensibilidade, a capacidade de comunicar-se diretamente com a alma, o cuidado, o bom gosto, a justa medida, etc.
Fica claro, dada a dificuldade em responder a tal questão que, ao contrário, é fácil afirmar o que a arte não deve ser. A arte não deve ser feia, grotesca, vil, infame, banal, maléfica ou destrutiva. A arte não deve educar para o Mal, não deve dessensibilizar, não deve ser ridícula nem causar repulsa. Exatamente tudo aquilo que a arte contemporânea engajada e revolucionária diz ser.
A arte moderna é, como afirma o filósofo Roger Scruton em seu imperdível documentário “Why Beauty Matters“, a roupa invisível do rei nu. É preciso que o terrível medo de ser considerado inculto ou retrógrado seja vencido, afinal. Afirmar que a arte moderna é feia e maléfica é gritar para toda a multidão que o rei está nu.
Notas:
[1] A tese que começa a ser esboçada nesta série de artigos trata justamente de questionar até que ponto a mentalidade revolucionária de base marxista teve responsabilidade na degeneração da arte em todos os seus ramos. Os próximos artigos desta série tratarão particularmente da influência da mentalidade revolucionária na música de concerto do séc. XX.
[2] SCRUTON, Roger. “Why Beauty Matters”, BBC London, 2009.
[3] A extrema racionalização (ou justificação) dos métodos criativos pós-modernos, de preferência incompreensível ao público em geral, é sempre uma constante em qualquer uma das onze artes. Quanto mais inacessível aos sentimentos, mais fácil acusar quem não as engole de “atrasado”, “resistente à marcha da História” ou mesmo “burro”.
[4] Sabidamente, os três pilares da civilização Ocidental: o direito romano, a cultura judaico-cristã e a filosofia grega.
[5] Tal argumento, longe de ser uma falácia lógica ou um “reductio ad absurdum”, é a consequência exata do desdobramento de tal conceito de arte. Assim como realmente ocorreu do urinol ao sacrifício de animais e à automutilação. O feio e o grotesco, como qualquer droga, demandam cada vez doses maiores para satisfazer a própria banalização.
[6] É evidente que há professores universitários vocacionados, talentosos e honestos. Falo aqui da possibilidade profissional que o conceito contemporâneo de arte traz aos “picaretas”.
[7] Causa espanto perceber que o espírito de manada, tão comum nas relações interpessoais na infância e principalmente na adolescência, ainda funcione tão eficientemente entre adultos ditos letrados.
[8] Inclusive a complexidade contida na simplicidade!
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