Comunismo: sem sombra nem água fresca
O comunismo se torna mais vivo quando visto pela literatura de quem o conheceu - como Vaddey Ratner, que viveu no Camboja sob Pol Pot.
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O Brasil, nas últimas duas semanas, graças a Deus, vive uma fase de bonança: Dilma sofreu impeachment, Lula foi denunciado, há uma sensação de dever cumprido por parte daqueles que foram às ruas, que viram tudo acontecendo e não se resignaram; e que, de uma forma ou outra, seguem ajudando a empurrar o país para mais perto dos trilhos.
Mas a idéia aqui é acabar um pouco com essa alegria e descanso, para não deixar essa onda passar e ser lembrada só como uma marolinha. É chegada a hora de arregaçar as mangas e não parar. O impeachment foi um passo importantíssimo: tirou uma espada de cima de muitas cabeças, afrouxou a gravata que estava enforcando, possibilitou um respiro. Porém, em hipótese alguma avalizou um tempo de parada para relaxar. É chegada a hora do tudo ao mesmo tempo agora; é hora de surfar nessa onda e trazer à luz o verdadeiro inimigo.
O objetivo deste artigo não é trazer um farto material histórico, filosófico, político ou sociológico para armar os guerreiros dessa cruzada, mas apenas puxar uma cortina, apontar uma fresta da História apreendida na literatura de um modo emocionante e que pode nos dar combustível nesse mundo árido que temos de enfrentar.
Toda essa introdução é para apresentar um livro, vejam só, cuja trama se passa no Camboja, em 1975, quando aconteceu a revolução comunista. Trata-se de À Sombra da Figueira, de Vaddey Ratner, que escolhi para ler depois de uma despretensiosa dica de… alguém que não tinha lido.
Para falar do livro, imagino o que as pessoas no Brasil sabem sobre o Camboja — não deve ser muita coisa, talvez sequer a sua localização no mapa mundi. O que, considerando que este é o país do Antes e Depois da Federal e da Nação de zumbis, não é de se estranhar. Mas imagino que, se for o caso, deve-se saber que o Camboja enfrentou um terrível regime comunista sob o comando de Pol Pot e só, ponto.
Ao iniciar a leitura não é difícil lembrar do professor Olavo de Carvalho falando sobre a formação do imaginário nas suas aulas do Curso Online de Filosofia, tema que tratou também no artigo A reeducação do imaginário, e tema também do professor Rodrigo Gurgel, tratado com maestria no livro Crítica Literária e Narratofobia.
De certa forma, a leitura desperta a percepção de sentir esse imaginário se formando em nós mesmos. Não há só o deleite do entretenimento, que sentimos ao acompanhar um romance, mas há também um acontecimento histórico tomando forma, sendo absorvido e percebido no contexto atual — uma sensação parecida à de quando se assiste Chuck Norris x Comunismo.
Esse poder da ficção, de recriar em nós o passado, deve ser um dos elementos utilizados na guerra cultural que enfrentamos e para a qual este artigo quer acrescentar um sopro de vida, sem nenhuma pretensão de ensinar nada a ninguém. Aliás, para estimular a nossa luta, quero indicar o curso Guerra Cultural — História e Estratégia do Professor Olavo de Carvalho — pois minha única pretensão ao falar sobre o romance é despertar a vontade de mergulhar em uma leitura capaz de arrancar lágrimas em mais de uma ocasião.
Aliás, vamos ao livro.
A protagonista, Raami, é encarregada de contar como foi a chegada do regime comunista. Raami é uma criança de 7 anos que mora com a família na capital Phnon Pehn — e por meio da sua inocente visão de mundo, que observa tudo com olhos atentos, conta sua história terrível.
Raami é uma princesa e percebe seu mundo ruindo lentamente, as transformações que vive, os horrores que presencia: as ameaças que sofre são devastadoras. Mas a delicadeza com que sente e conta é emocionante.
O livro não toca nenhuma vez, a não ser na orelha, no nome Pol Pot — menciona sempre a Organização que comanda e “resolve”, ordenando tudo o que é permitido pensar, como agir e substituindo brutalmente a vida antes conhecida e prezada. Aborda também a violência do Khmer Vermelho, em vários trechos.
Ao avançar na leitura, todo o horror que se tem em mente sobre o comunismo cresce de forma assustadora, parece um fermento diabólico adicionado àquilo que já era o próprio Mal. Percebe-se uma mudança de cenário, da cidade para os campos, com o claro intuito de acabar com aquela.
Aparecem também os velhos conhecidos dos regimes comunistas: a fome, a total ausência de compaixão, o desprezo pelo sofrimento alheio, a negação total do valor da vida humana. O horror pode ser percebido nestes breves trechos:
“Eu não consegui pedir diretamente. Sentia-me horrivelmente envergonhada por minha fome, achando que esse anseio constante por comida era uma espécie de ganância, uma fraqueza de caráter. Um nó retorceu dentro de meu estômago.”
“Elas levariam o caixão para enterrar, explicou a Comissão Fúnebre. Em algum lugar entre os campos de arroz. Um corpo não devia ser desperdiçado. (…) fertilizaria o solo. Serviria à Revolução melhor do que quando era vivo. Devíamos estar orgulhosos. (…)”
São fatos que não se pode perder, que devem estar sempre gravados na memória e na História, para que não seja possível o avanço da lavagem cerebral que se vê diariamente.
A percepção de mundo de Raami sensibiliza seus leitores, ela oferece sua mãozinha delicada para mostrar as atrocidades cometidas, desperta um sentimento de revolta e proteção para que jamais seja possível deixar que uma criança volte a ser submetida a tais condições. Enquanto lemos, reconhecendo a incapacidade de, sozinhos, fazer frente a tanta maldade, as lágrimas surgem conforme a história avança.
Como uma carinhosa guia, ela nos conta detalhes do que vive e sente:
“Ela me soltou, e, deixando de lado o Kroma usado, levantou-se para pendurar o resto das roupas lavadas, que, notei de repente estavam azuis enegrecidas; todas as cores e estampas haviam desparecido. Mae havia dito que o Kamaphibal mandara que tingíssemos nossas vestes com índigo. Tudo devia ser silenciado. Preto era a cor da Revolução. Mamãe, com o sarongue cor de jade e a blusa rosa-claro ainda sem tingir, parecia um lótus despontando na lama. As cores, ou talvez ela – o brilho de sua presença no meio da casa de palha e terra – me fez querer apertá-la forte, joguei meus braços ao redor de seu corpo esguio, da cintura afilada (…)”
Por outro lado, a leitura serve também como um alerta, apresentando tipos que vemos pelo Brasil todos os dias, muitas vezes em redes sociais, colegas de trabalho ou, muito pior, professores de nossos filhos.
A personagem que viveu na revolução comunista cambojana descreve uma situação até corriqueira do Brasil:
” — Os soldados chegaram certa noite em nossa cabana. Disseram que eu tinha de ir com eles. Perguntei por quê. Disseram que eu era membro da CIA. Esses meninos eram jovens e analfabetos. Não sabiam diferenciar o leste do oeste, e muito menos sabiam o que era CIA, o que essas letras inglesas representam. Mas haviam sido instruídos a dizer isso. Se querem pegá-lo e você não cometeu nenhum crime, eles o acusam de trabalhar para a CIA. Acho que é porque não tem como provar o contrário, mesmo que você tente. ‘Eu tinha de ser afastado da família’, disseram. (…)”
Quantas vezes não nos deparamos com pessoas que acreditam piamente no que esses “meninos” afirmam. E, quando apontamos a a verdade, o grito de resposta é “VOCÊS SÃO LOUCOS, VOCÊS VÊEM COMUNISMO EMBAIXO DE SUAS CAMAS, DETURPARAM MARX, NÃO É BEM ASSIM, VÃO ESTUDAR HISTÓRIA!!!”
As semelhanças não param por aí. O modus operandi não mudou. O trecho abaixo lembra muito uma situação vivida este ano, durante a votação do impeachment:
“O garoto olhou, tentado. Então, de repente, algo cresceu nele e, endireitando sua postura, cuspiu no rosto de Big Uncle. Houve uma pausa nervosa enquanto esperava para ver o que o titã faria. Big Uncle ficou como estava, com a saliva correndo pelo rosto.
O garoto riu, primeiro vigorosamente, depois mais estridente, emocionado por ser capaz de impor obediência a um gigante.
— PORCO IMPERIALISTA!
Levantou o pé e chutou o estômago de Big Uncle, que caiu sobre seus quadris. O garoto deu um passo ou dois para trás, ainda apontando a arma para nós, e já a uma distância segura, proclamou:
— ABAIXO OS PORCOS IMPERIALISTAS!
Voltou-se e correu para fora da casa. Mais uma vez tiros foram disparados. Papai pôs as mãos sobre minhas orelhas. Mamãe pressionava Radana contra o peito.”
A covardia e os gritos vazios se repetem na no Brasil de hoje. Para eles, é a hora da colheita daquela semente plantada pelo canto da serpente e regada durante décadas, de que “é tudo por um bem maior”.
Recentemente, mostrou-se que o lado de cá não está anestesiado, o jogo não está perdido, não é hora de pendurar as chuteiras — pelo contrário, é hora do tudo ou nada, como naqueles filmes do Jean Claude Van Damme, da década de 90, em que ele apanhava muito até levantar e começar a bater.
O treino é pesado, demanda estudo, leitura, coragem, investimento, humildade de escutar, estudar e ler aqueles que estudaram e já estão há muito tempo nessa estrada, mas não há outro caminho. As tragédias da História não podem se repetir aqui, debaixo dos nossos narizes, se há meios para impedir.
A hora é essa!
Sobre o livro, a última menção para atiçar a vontade da leitura é que dá para resumi-lo se imaginarmos como uma versão cambojana de“A Vida é Bela”: imperdível! A autora mereceria o Oscar e todas as saudações dignas da realeza.
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