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Cunha não tem nada a ver com a oposição

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edaurdo cunha

Até 2014, o nome de Eduardo Cunha fora do Rio de Janeiro era conhecido de alguns raríssimos espécimes estudiosos de política a ponto de conhecerem todos deputados dos grandes partidos em uma Câmara com 513 deles, se renovando parcialmente a cada 4 anos.

De repente, devido à sua ascensão à presidência da Câmara, ficou conhecido como o Frank Underwood brasileiro, em referência ao personagem de Kevin Spacey na série americana House of Cards, que passa de um deputado sem expressão nacional à vice-presidente e, rapidamente, através de um processo de impeachment, a presidente da nação mais importante do mundo – sem votos.

Situação realmente análoga à de Eduardo Cunha. Com duas semelhanças brutais que geralmente são ignoradas. A primeira é a de que ambos são da base da presidente. No sistema bipartidário americano, seria como juntar todo o PT e sua linha-auxiliar em um só partido, assim como os outros partidos. Há brigas internas, discussões, gente que se odeia. Mas acabam nomeando um para disputar por todo o partido. Assim, há pessoas até filiadas a um partido que, em uma eleição, preferem um candidato do lado oposto. E sem PMDB e o “meião” fisiológico. Além de execrar o fisiologismo, o poder pelo poder, tem a vantagem de permitir que candidatos pequenos subam rapidamente com todo o apoio partidário – vide Barack Hussein Obama.

A segunda semelhança é que aquele “sem votos” mostra o que Underwood e Cunha têm realmente em comum: ambos eram desconhecidos, mas se tornaram sumidades nacionais de um ano para outro simplesmente por tramóias internas feitas por partidos, distantes dos olhos do público.

A comparação, portanto, é muito mais útil e didática do que geralmente são as comparações.

frank underwoodContudo, parece haver uma inversão recente, sobretudo entre os apoiadores do governo petista. Eduardo Cunha viveu às turras com o governo que ajudou a eleger e vice-versa. Porém, Cunha, evangélico, chegava a dizer que Serra “estava do lado dos homossexuais” em 2010, seu partido foi o fiel da balança para a apertadíssima reeleição de Dilma Rousseff, a eleição com 7 viradas. Se passou a se desentender com Dilma, não deixou em nenhum momento de ser da base aliada. Ou seja, em termos do nosso sistema multipartidário, se fôssemos como na América, ambos seriam do mesmo partido.

Visto que Cunha é um fisiológico, seu apoio ao governo Dilma depende, antes de mais nada, de Dilma continuar no poder. Apesar da aparentemente complexa personalidade de Cunha, que nos termos da imaginação moral seria uma luta com contradições aparentes da ética na realidade, seu pensamento é bem simples e platiforme: quem apoiar para continuar no poder? Se quem está no poder periga sair do poder, Cunha rompe com o governante.

Como esta própria decisão passa por Cunha, mas não é realizada por Cunha, sendo uma decisão colegiada de toda a Câmara e posteriormente do Senado, Cunha faz a lambada e dá dois passinhos para lá, dois para cá.

Mas para a narrativa jornalística e da conversa de boteco sobre a política nacional, parece que, por isso, Eduardo Cunha virou o próprio “símbolo da oposição”. Como se todos os 71% de brasileiros que rejeitam Dilma fossem eleitores de Cunha. Fãs de Cunha. Pessoas que apóiam o impeachment justamente porque querem Eduardo Cunha comandando o país.

É típico de uma mentalidade que acredita que direita e esquerda não são nomes metafóricos, mas a própria descrição de suas doutrinas, também crer que partidos de oposição e situação em um país são apenas “opostos” simetricamente perfeitos. Ou o que é mais agravante: que as mentalidades das pessoas, sem representatividade nenhuma em partidos (fora o PT e partidos socialistas, que são a concretização semi-perfeita do que quer o seu eleitorado), é apenas um espelho, um oposto, uma versão invertida de um partido no governo.

dilma você está demitidaNa verdade, basta conversar com as pessoas na rua para perceber que enquanto a esquerda vota com gosto, acreditando em candidatos e partidos, crendo em planos de governo e programas sociais, mata e morre e vive em função da política, considerando que ser “politizado” é o ápice da vida de um ser humano, a cada vez mais crescente direita brasileira (as pessoas, não os políticos, pois nem meia dúzia podem ser considerados “de direita”) vota com nojo, desprezando políticos (até seus próprios candidatos), desconfiando de tudo, escolhendo o menos pior, torcendo com amargor e pessimismo que o candidato que tomar o poder apenas facilite que a política entre pouco na vida social e privada do país, que sejam um caminho para uma vida em que cada um tome conta de si mesmo, sem precisar enfrentar políticos  e seu corolário inescapável (aumento do poder estatal, partidarização, corrupção etc). Ser “politizado”, para a direita, significa apenas ter consciência do quanto os políticos estão ameaçando a nossa liberdade e a nossa carteira.

Assim se vê que a narrativa de que Eduardo Cunha seja algum membro da “oposição” (até mesmo da “direita”) soa, na melhor das hipóteses, doidivanas. Cunha é tão somente uma ovelha desgarrada do rebanho, que agora vislumbrou que a continuidade no poder pode depender de defender quem não quer a continuidade do governo Dilma Rousseff.

É fácil para jornalistas e o palpitariado político comprar e vender a versão de que Cunha, por agora ser a ponta de lança que pode acatar o início do fim do reinado petista, é um membro da direita (ainda mais por ser evangélico, o que não significa, por si, nada em termos políticos: o próprio PT também surgiu de dentro da Teologia da Libertação da Igreja Católica, adversária fidagal do socialismo).

Mas a realidade não é tão Spy vs Spy, mesmo que continue mais simples do que pareça. Cunha é apenas ocasionalmente anti-PT, enquanto a direita, ainda sem representação no Congresso ou em partidos, é integralmente anti-PT, mas também anti-PMDB, anti-PSDB, até mesmo anti-DEM, mais próximo da esquerda americana do que de qualquer direita no mundo.

E, sobretudo, a direita é anti-Cunha até a medula. Não se conhece um grande nome da nascente direita brasileira que tenha votado em Cunha, ou mesmo que o defenda. Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino, Luiz Felipe Pondé, Felipe Moura Brasil, o importado João Pereira Coutinho – qual deles pediu voto para Cunha?

eduardo cunha cabeçaO que se nota não é uma dificuldade do jornalismo entender quem é Eduardo Cunha, mas uma vontade de usá-lo como o bode expiatório de que fala René Girard: um inimigo poderoso a unir forças e disfarçar as diferenças cruciais entre seres humanos. É assim que civilizações nascem. Cunha, então, passa a ser o lado malvado, o “oposicionista” que também é corrupto (o que não é surpresa para uma direita aponta isso no PT desde antes de este tomar o PT, e que sempre desconfia de políticos).

Mas apenas jornalistas e palpiteiros do B&B (Boteco, Blog) acreditam de fato que Cunha faça parte da oposição, ou mesmo da direita.

Agora que uma nova peça de impeachment assinada por Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr. foi assinada, os jornalistas não fizeram uma única pergunta a respeito dos fundamentos técnicos para o impeachment ou sobre qualquer questão de ética, justiça ou ordenamento político para a questão. Apenas perguntam sobre Eduardo Cunha, virando mesmo as costas aos movimentos que pedem o impeachment de Dilma, como denunciou o Movimento Brasil Livre – nem mesmo quando a peça está sendo protocolizada se pergunta algo além de “Mas e o Eduardo Cunha?”

A resposta precisa ficar clara à esquerda, a única que ainda acredita neste mistifório: ninguém está nem aí.

A direita preferia até Aécio Neves, Benjamin Netanyahu, Clint Eastwood ou um chinelo velho como presidente e presidente da Câmara. Infelizmente para ela, tem Eduardo Cunha. Em quem ela não votou. Agüenta o que tem para hoje – afinal, já é chamada de “golpista” até antes de já pensar em derrubar Cunha.

Enquanto isso, até Lula reúne a bancada do PT para conter o “Fora, Cunha” (sic). Acreditar que Cunha seja da oposição só confunde e mistifica o óbvio mais ululante do país.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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