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Datafolha: loucura e método

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datafolha

Quando Polônio interpela Hamlet na biblioteca, o príncipe da Dinamarca já conhece seu funesto destino e o ominoso papel que tem de tomar para agir conforme a justiça tão diversa da justiça dos homens.

Fingindo loucura, alimentada com a impaciência de ser obrigado a entabular conversação com capachão tão desprovido de conteúdo, Hamlet confunde de vez o serviçal tão pouco inteligente, mas tão empolado no que diz para impressionar a realeza. Citando um sátiro da Antigüidade, Hamlet o compara a Polônio, querendo permanecer jovem e descolado, mesmo tendo discurso e espírito mais do que grisalhos.

Polônio, à parte, só pode dizer a famosa frase: “Though this be madness, yet there is method in ’t.” Apesar de ser loucura, há método nela.

Se há algo hoje que tenta parecer jovem e descolado, e é mais brega e envelhecido em discurso e conteúdo do que nosso Polônio (desta feita em auto-análise), este algo é a Folha de S. Paulo. Curiosamente, o jornal que tinha a famosa propaganda advertindo que é possível contar mentiras apenas dizendo a verdade. Desprezada tanto pela esquerda quanto pela direita, o diário parece ter encontrado na propaganda governista  uma sobrevivência para suas vendas que não aumentam – o BNDES, ao menos, parece não falir.

Basta ver suas gloriosas reportagens sobre as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff neste domingo. Logo no começo do protesto, marcado 8 dias antes, a Folha disparou uma notícia difícil de acreditar que não tenha vindo do Sensacionalista ou, mais provavelmente, do Joselito Müller.

folha ciclofaixaEstampou o jornalCarros de som de movimentos contra Dilma obstruem ciclovias na Paulista. Repetindo: coi ta di nha da ciclofaixa. Dentro, comentários dignos de uma realidade paralela em que apenas petistas tenham direito a falar, andar, ocupar lugar no espaço:

“Está atrapalhando. Vai ser ruim porque todo mundo vai ter que desviar. Existem outros espaços e dias para se manifestar”, diz o advogado Fernando Vidigal, 27, que conta utilizar a via para lazer todos os domingos.

Ou a propaganda ideológica um pouco mais desabrida:

Para a analista de controles internos Giovana Morais, 30, “está uma porcaria”. “Atrapalharam totalmente quem veio para o lazer. Na semana passada teve uma manifestação do movimento negro e fizeram isso respeitando os outros”, avalia.

Onde estava aquela repórter da Folha ferida em 2013 ao redor de cartazes como “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”, garantindo em seu Facebook que fica claro quem está tomando um lado nessa coisa toda?

folha trânsitoA Folha também garantiu que a manifestação, ora esta, atrapalhava o trânsito da região. A mesma Folha que, além de ser a única a se preocupar com o uso da ciclofaixa do prefeito petista Fernando Haddad (nunca a ciclofaixa foi tão usada quanto neste domingo, quando foi tomada de povo do Paraíso à Consolação), sempre elogiou as discutíveis iniciativas do prefeito petista de fechar a Avenida Paulista para carros. Tem como ver “meras coincidências” aí?

Mas o principal estaria por vir. O Datafolha, aquele instituto de pesquisa imparcial, que sempre que erra, misteriosamente sempre erra para o mesmo lado, afirmou que 40 mil pessoas tomaram a Avenida Paulista neste domingo. O que foi mote para a Folha estampar a seguinte capa:

folha 40 mil menor protesto

Talvez não tenham sido muito mais do que 40 mil pessoas na Paulista. O número não importa – tente-se compreender o que foram as Diretas Já ou o Fora Collor avaliando-se o número maior ou menor de manifestantes em cada um dos vários atos que geraram estes eventos históricos.

Muito menos explica o jornal o mais óbvio: que o evento deste domingo foi marcado como um Esquenta – como uma festinha de improviso, oito dias antes, apenas para mostrar a força do pedido popular de impeachment. Como tentar forçar uma capa claramente apoiadora de um dos lados do nosso futuro político sem explicar o mais básico para seus leitores? Por que tentar enganá-los assim – ou, na melhor das hipóteses, como seus jornalistas não se informaram a respeito de algo tão elementar?

Mas o que chama mesmo a atenção, sem o brilho de Hamlet em confundir e confundindo-se entre confundidos e confundidores, é o alegado método do Datafolha para se chegar a tais números. Não somos estatísticos, mas ao ler a reportagem-desculpa da Folha, somos instilados à derrisão ou ao terror, tão confundidos entre uma comédia satírica ou um show de horrores que, seja o que for, não permite nossa normalidade.

Diz a reportagem:

A contagem foi realizadas das 13h às 18h. No momento de maior concentração, o ato teve aproximadamente 35,8 mil pessoas protestando simultaneamente.

O número apurado pelo instituto indica a quantidade de pessoas diferentes que, em algum momento, foram à manifestação no intervalo de tempo estudado.

Foi um evento menor que os outros três organizados pelos mesmos grupos em 15 de março (210 mil pessoas), 12 de abril (100 mil) e 16 de agosto (135 mil).

Neste domingo, 3.700 pessoas participaram do protesto do começo ao fim.

MBL x CUT impeachmentNovamente, o número não importa – levando-se em conta o tempo de organização e seu objetivo, pode-se definir como uma manifestação tão vigorosa quanto a primeira. Também compreendendo-se que quem se manifesta contra Dilma não são militantes profissionais, e sim gente normal, com trabalho e precisando descansar no fim-de-semana (para onde vai toda a defesa do lazer da Folha nestes domingos ensolarados, sem ser na ciclofaixa do Haddad na Paulista?), reunir mais do que 20 pessoas já significaria muito mais do que manifestos pró-PT ou pró-esquerda reunirem mil.

Mas… qual a mágica para nossos alquimistas de plantão saberem que exatamente 3.700 pessoas participaram do protesto do começo ao fim?! o.O

Para fazer a contagem de participantes, o Datafolha dividiu a Paulista em quadrantes. Em cada um, os pesquisadores aplicaram uma metodologia de contagem a partir da densidade do público.

Também foram aplicados questionários para conhecer o perfil dos presentes. A combinação dessas técnicas possibilitou medir a renovação do público ao longo da tarde.

As entrevistas também foram usadas para identificar e calcular quantidade de presentes sem qualquer relação com a manifestação, como as pessoas que foram à avenida por lazer. Esses não foram computados como manifestantes.

Às 13h, no primeiro momento da contagem, 44% dos presentes estavam na avenida para protestar. O percentual foi subindo até chegar a 80% às 16h. No encerramento do protesto, eram 72%.

Parece piada (ou talvez seja, vai saber), mas o método do Datafolha foi… dividir uma heterogênea Avenida Paulista em quadrantes (como se a região da Brigadeiro abrigasse o mesmo tanto de “áreas de lazer” quanto a Consolação ou a Augusta, com seus shoppings e praças apinhadas de skatistas e hippies vendendo miçangas) e, aliado a isto, perguntar para as pessoas aleatoriamente na rua (encontre um jornalista da Folha nestas manifestações; é mais do que o sobejante para nunca mais confiar em números do Datafolha, a não ser errando na casa das dezenas, no mínimo).

Assim, o método do Datafolha é tentar verificar quais pessoas foram embora, quais pessoas “trocaram de quadrante”, quais pessoas chegaram ou foram embora (quando alguém entra num bar para ir ao banheiro ou pegar uma cerveja, como fica para o Datafolha?).

folha impeachmentO Datafolha, querendo saber como Polônio, querendo engabelar como Hamlet, querendo prever como Mãe Dinah, tenta uma metodologia em que “a renovação do público” é medida (!). Ao invés de uma foto aérea do auge da manifestação (misteriosamente, nenhum jornal impresso quis divulgar uma foto do auge, preferindo sempre uma foto cravada às 13 horas em ponto, misteriosamente com ganas de demonstrar que a Paulista estava mais vazia do que estava), tenta averiguar quem entra, quem sai, quem se mexe. E até garante que sabe quantas pessoas ficaram das 13h às 18h (!!!).

Uma metodologia mais simples não erraria menos? Por que será que este instituto de pesquisa quer saber tantas filigranas de importância nula, ao invés de tentar uma média mais geral e, digamos, acertar?

Se quer tanto transmitir uma mensagem, a Folha deveria lembrar (ou melhor, conhecer) as palavras de Sun Tzu: quando você conhece melhor seu inimigo do que ele te conhece, a guerra já está ganha.

Para a militância cool e despojada Vila Madalena, aqueles típicos riquinhos que ouvem Loser Manos e MPB ruim, usam sandálias de couro cru e roupas caríssimas que imitam molambos de mendigos – ou seja, o exato público médio da Folha, que depois gritará que não confia na Folha por ela ser direitista, não sendo pol-potista o suficiente – talvez fosse interessante saber se este movimento pró-impeachment significa algo ou não.

E significa. Significa algo não traduzível em números – muito menos em “manifestação foi menor” (letrinhas miúdas inexistentes: tendo sido convocada apenas 8 dias antes). É isto o que o leitor da Folha precisaria. E mesmo se for petista. Mesmo se for mais dilmista do que a Dilma. Entender um protesto de rua não é apenas verificar sua numerologia como o Walter Mercado. É preciso entender o que está em curso se se quer tanto fazer algo a favor ou contra Dilma.

Por que a ânsia vulcânica em tentar medir filigranas (“Veja bem, 17% dos manifestantes neste momento foram embora, e de quem está aqui, 11% chegou nos últimos 4 minutos”), e não em saber bem menos, mas saber corretamente?

Impressiona como um instituto de pesquisa possa ter um método tão maluco-beleza, e ninguém conteste seu resultado ou o mistifório que produz números tão gritantemente contrários à realidade. Na primeira manifestação, o Datafolha contava 210 mil manifestantes, enquanto a PM contava mais de um milhão (mera discrepância, claro). Para não lembrarmos da estridência de erros nas pesquisas de intenção de votos (o Datafolha sempre some misteriosamente assim que a realidade aparece).

Se o Datafolha resolver averiguar sua própria popularidade, pelo método que for, fatalmente a encontrará no nível Luciana Genro de desprezo popular.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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