Como conversar com Márcia Tiburi
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Filósofo. Rótulo engraçado esse. É um título que, por si, já indica qualidade. Se um cabra é vendedor, não se presume imediatamente que ele seja um excelente vendedor, capaz de te vender a Torre Eiffel e ainda te dar a sensação de tê-lo tapeado. Filósofo é bigorna pura, é estar automaticamente no cânone, é diálogo socrático com Plotino ou Bergson só pela presença.
É garantia de ser lembrado por séculos e ter a vida e obra estudada mesmo tendo errado tudo o que tenha pensado. Fi ló so fo. É o amante do saber, alguém inimputável por si. O conhecedor do verdadeiro, bom e belo. É tudo o que você sempre quis ser quando crescer.
Márcia Tiburi é, segundo consta, filósofa. Definir o que é filosofia é tarefa para filósofos – pode ser Sócrates ou Heidegger, a dúvida permanece. Definir o que é um filósofo já é tarefa rés-do-chão para algum burocrata do MEC ou blogueiro ideólogo. Os dois caminhos apontam para duas danações, mas não comunicáveis entre si. Não dá para imaginar Søren Kierkegaard colocando em seu Linkedin: “Profissão: filósofo”.
Márcia Tiburi está interessada em questões filosóficas? Por exemplo, em rediscutir se aquilo que se chamou na filosofia de intelecção funciona mesmo como é entendido desde a Idade Média, ou seja, como a capacidade de extrair idéias das coisas, separando assim nosso conhecimento humano da mera cognição sensitiva dos animais? Foi o que Xavier Zubiri fez, revertendo tudo o que pensávamos até então e destacando que o que diferencia o homem do animal é a própria cognição sensitiva, quando o homem já trabalha com idéias na substância do dado sensível, e não a intelecção.
Márcia Tiburi lida com este tipo de indagação?
Que tal a filosofia de Ernst Cassirer, que tanto criticou a tentativa de substituir a metafísica pela fenomenologia de Martin Heidegger, mostrando que a forma como o homem antigo enxergava os deuses na realidade não era por uma mera antropormofização de fenômenos (a ingenuidade Mundo de Sofia de achar que os vikings realmente achavam que Thor era apenas um homem mágico se divertindo ao jogar trovões em nossa caçoleta), mas uma apoteose da realidade refugiada na unidade do ser, além de sua mera aparência – o que nossa vã filosofia moderna mal consegue começar a entender?
Márcia Tiburi está avançando essa discussão? Analisando o nível pré-lingüístico de captação da realidade, colocando, sei lá, a fantasia de William Blake como ponto fulcral da inteligência humana, comparando sua visão de Behemoth e Isaac Newton, e mostrando a capacidade do logos em gerar novos conceitos científicos a partir de uma superação da chatice materialista do positivismo tão em voga no Brasil? Só uma idéia, claro.
Será que Márcia Tiburi entende esse tipo de conversa?
Dando uma rápida olhada pelo que escreve, não é que precisamos descer ao térreo primário das discussõezinhas de primeiro colegial para quem percebeu que precisará ter algo na vida como uma idéia própria. É preciso cavar muitos níveis no subsolo. Filosofia six feet under.
Márcia Tiburi é a típica filósofa de televisão. Se algo é moda, se algum tema de séria relevância está sendo debatido abestalhadamente, lá estará Márcia Tiburi debatendo abestalhadamente, mas com o título de “filósofa”, chancelando os debates mais abestalhados com o padrão Leibniz™ de qualidade.
Tiburi era uma das âncoras do programa de TV Saia Justa, da GNT. Programa global que coloca umas cinco mulheres triliardárias para falar de “problemas de mulher” ou alguma outra coisa whatever (tentei ver duas vezes, nunca entendi nem sobre o que falavam). Como se o problema da mulher brasileira fosse espelhado nos siricuticos socioeconômicos de Fernanda Young, Marisa Orth, Marina Lima, Ana Carolina ou Luana Piovani.
A técnica desses “filósofos” de GNT, metafísicos de 140 caracteres, amantes da sabedoria de DCE, é facilmente assimilável. Em 5 minutos e um banho de loja é possível transformar qualquer um em um “pensador” deste porte (só não exagere no banho de loja: é sempre de bom tom usar aquelas roupas caríssimas que só propaganda da MasterCard consegue descobrir onde custam tanto, mas que te deixam nitidamente parecendo um mendigo, com calça jeans que parece já ter saído da fábrica usada por todo operário desde a invenção do torno; no caso de mulheres, capriche num cabelo Jacques Janine que dê aparência de não ter sido penteado desde o cenozóico inferior).
O primeiro passo é a adesão imediata. Existe algo que todo mundo está seguindo irrefletidamente? Fale sobre a quebra da estrutura do devir na sua potencialidade do real só para aderir. “Intelectualmente”.
Vocalizando o empoderamento do protagonismo diferenciado endereçando a governança das narrativas ressignificadas.
— Michel Melamed (@michelmelamed) April 8, 2016
Pode ser qualquer coisa: junho de 2013, piercing na gengiva, imigração de muçulmano, mostrar as tetas, encontrar machismo no gibi da Mônica, ciclovegantransfemeoativismo, não vai ter Copa, não vai ter golpe, performance artística de petista enfiando o dedo no ás-de-copas de petista. Adira. Sempre. Se é moda, como pode ser algo questionável? Se todo mundo segue, como logo você, o pensador, não vai seguir, aceitar, obedecer, entrar na boiada?
Mas não é apenas seguir o que o país inteiro faz. É achar que isto é uma contravenção. Como se dizer o que está todo mundo dizendo fosse algo a demandar uma coragem hercúlea, ação extrema que precisa ser dita aos sussurros com medo das autoridades, apenas em “caso de necessidade”, em dilmês.
Não importa que você está justamente bajulando autoridades, que simplesmente você está concordando com a modinha geral, que todos os “poderosos” são justamente os que promovem a sua causa. Fale como se você estivesse escondendo uma estrela de Davi tatuada no pescoço no meio de uma conferência do Terceiro Reich. Tem de dominar todos os espaços, ser onipresente, nadar de braçada no mar da concordância universal – mas sempre com uma paranóia e sentimento de perseguição e perigo como se você fosse eterna vítima de uma ditadura ou, caso esteja no poder, de “golpe”.
É assim que se fala em DCE de faculdade. Os “debates”, as teatralidades de concordância entre feministas e trotskystas, entre movimento negro e gramscistas, entre eleitores do PSOL e coletivos LGBT, são sempre num tom de trombeta apocalíptica, como se aquele indivíduo, mergulhando em sua própria individualidade, com uma coragem de São Sebastião, estivesse chocando todos ao vociferar aos perdigotos: “Precisamos de cotas! Vamos diminuir a desigualdade salarial entre homens e mulheres! Bolsonaro é homofóbico! Chico Buarque é um poeta! Quem não gosta do PT é elite coxinha! PM fascista e racista! Precisamos de Estado para controlar o mercado! O capitalismo é machista e opressor! E o Cunha!” e mais uma meia dúzia de clichês a que se resumiu todo o pensamento acadêmico de Humanas no Brasil, como se isso fosse uma quebra do esperado, e não o presente em repetição ad nauseam que é a vidinha acadêmica esquerdista leitora de revista piauí.
Isso chama bastante atenção de quem é meio loser, o que compõe cerca de 98% dos quadros das faculdades de Humanas. A última moda (que, adivinhe, foi aceita sem discussão por 102% da esquerda) é a política de identidade, o segundo passo do filósofo Vila Madalena. Não ser um indivíduo, ser membro de um coletivo.
Márcia Tiburi nunca fala em seu nome, fala em nome de um grupo que representa. As mulheres. Dá cursos como “Mulheres & Filosofia”, mostrando que o amor à sabedoria é dividido por setores. É a filósofa vagina. Num determinismo absoluto, essas pessoas levam às últimas possibilidades a idéia de que você pensa o que pensa porque a sua cor, o seu salário, a sua sexualidade ou sua genitália definiram isso por você.
Se o filósofo precisa de imaginação (Platão nunca viveu numa caverna, Marx nunca trabalhou, ainda mais numa fábrica, um único minuto de sua vida), aqui a norma é se prender a um comportamento padronizado e estereotipado (e quase sempre irreal) de um grupinho e só falar disso. Ao invés de argumentos sobre algo, um sentimentalismo geral, uma briga de torcida, um te pego lá fora de galera.
Não importa o quanto isso leve a futuras contradições, como defender tanto a condição feminina como única e inacessível à mente masculina, para então passar a considerar que os “transgêneros” são mulheres e devem até usar banheiro feminino (a divisão de banheiros, óbvio ululante, serve para proteger as mulheres, e não os homens).
No Twitter de Tiburi, por exemplo, além de platitudes como o bordão #IstoÉMachismo porque a revista Istoé informou o país do estado de desequilíbrio emocional de Dilma Rousseff, a presidente (o que isto tem de “machismo”?), lemos que a filósofa não tem escrúpulos em xingar uma mulher como a dra. Janaína Paschoal de “fascista” na frase seguinte. “Louca” não pode (mesmo quando ninguém chama a presidente de louca, mas ler uma reportagem de quatro páginas é exigir demais destes filósofos), “fascista” pode, deve, é cool – de fato, “fascista” se torna toda a realidade que não se encaixe dentro do Catraca Livre e de algum abaixo-assinado para proteger os apaniguados do Bumlai e do Youssef “pela democracia”.
O que nos leva ao terceiro ponto, a conceitofobia. Márcia Tiburi (e todxs os pensadores de seu escol: são absolutamente todos rigorosamente idênticos, nunca discordando de uma única vírgula um do outro, peões sempre substituíveis uns pelos outros) não raciocina, quod erat demonstrandum, por definições, clareza, essências e quintessências. Exatamente ao contrário, é pela dissolução de conceitos para que eles não tenham limites e distinções entre si.
O que é a “democracia” que Tiburi tanto defende? Tem a ver com a de Robert Dahl, a democracia na América de Tocqueville, pode ser acusada dos mesmos vícios democráticos que Friedrich Nietzsche enxergava nas democracias, é capaz de ser expandida à força sobre tiranias como acreditava Irving Kristol, depende ou cria valores morais, como discordam Irving Babitt e Norberto Bobbio?
Puff. Que papo pedante, parceiro. Basta gritar “Fora Cunha!” e imiscuir o conceito de “democracia” com o conceito de “PT no poder absoluto” e voilà.
Trata-se só da dimensão sentimental das palavras. Não do que elas significam e definem em contraposição a outras, mas justamente de analogias: do que elas podem parecer, focando-se num parentesco forçado. Falou alto? Fascismo. Tem adversários políticos? Golpe de Estado. É contra o comunismo? Ditadura militar escancarada. Não gosta de Bolsa Família? Elite golpista. Não gosta de dinheiro do BNDES pro Marcelo Odebrecht? Bom, ainda não inventaram um, mas espere o João Santana sair da cadeia.
Márcia Tiburi escreveu um livro chamado Como conversar com um fascista, título curiosamente semelhante ao famoso e polêmico How to Talk to a Liberal (If You Must), da conservadora Ann Coulter. Uma bisolhada no livro e não se lê um único argumento contra alguém que quer tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato, que queira culto ao líder, que pretenda tomar o poder com sindicatos para então integrá-los ao Estado, que defenda marchas coletivistas, que pretenda esmagar o liberalismo do Estado mínimo e trocá-lo pelo dirigismo de um Partido único que se torna o próprio Estado.
Porque quem defende tudo o que o fascismo defende é gente como, justamente, Márcia Tiburi. Ter de argumentar contra o fascismo (nos moldes do clássico As We Go Marching, de John T. Flynn) seria argumentar precisamente contra as crenças cegas da filósofa.
O que a amante da sabedoria faz é o oposto: imputa o pesadíssimo nome “fascismo” à direita liberal-conservadora, sua nêmesis suprema que o derrotou na Europa, justamente para causar incômodo (um fascista se incomodaria em ser chamado de fascista?). Seu livro serve, nem mais nem menos, para fascistas conversarem com pessoas normais.
É só ler o Guia Politicamente Incorreto da História do Mundo, de Leandro Narloch, para ver o resultado de um experimento simples: os deputados foram apresentados a frases de Benito Mussolini que não citavam o autor, como “Como um anti-individualista, acredito numa concepção de vida que destaca a importância do Estado e aceita o indivíduo apenas quando seus interesses coincidem com os do Estado”. Adivinhe qual foi o partido que mais concordou com a frase? PCdoB e PT na cabeça, PSDB e DEM os que mais discordaram.
Márcia Tiburi foi flagrada expulsando uma mulher, Kelly Cristina dos Santos, do Palácio do Planalto, um prédio público. Kelly vestia uma camiseta escrito “impeachment é democracia”. O contra-argumento intelectual que recebeu foi uma camorra enervada expulsando Kelly aos berros de “Fascistas, fascistas, não passarão!”, o que não é exatamente um esforço sináptico muito avançado. Talvez pudesse até ser considerado “discurso de ódio”. Márcia Tiburi estava, sabe-se lá por que raios, pouco à frente de Dilma Rousseff, a dirigente. Ela e seu bando estavam usando o Estado como propriedade de um Partido. Ela e seu bando expulsaram uma cidadã com uma forte ameaça física de linchamento por ela utilizar uma instituição que deveria ser, digamos, não-fascista.
Nunca ficou tão claro como se deve conversar com um fascista: à distância, para ele não usar o aparato estatal para te agredir. Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato. Fascistas somos nozes.
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