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O absurdo que é comemorar o Dia de Tiradentes

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Painel-Tiradentes-Portinari

Ao entrar no Memorial da América Latina, em São Paulo, o visitante pode ser imediatamente convidado a entrar no Salão de Atos Tiradentes. Como quase tudo no Memorial, incluindo o seu exterior, trata-se de uma gigantesca obra modernista de concreto armado praticamente vazia, com um gigantesco painel ocupando uma das paredes.

Trata-se do Painel Tiradentes, de Cândido Portinari, que, em três telas justapostas, mostra cenas marcantes da vida de Tiradentes, um dos heróis nacionais e protagonista da Inconfidência Mineira.

Estão lá o julgamento, não apenas jurídico como pelo público – história narrada com os mesmos arquétipos bíblicos de Judas e Barrabás, dos apóstolos e da crucificação –, além do seu enforcamento e do esquartejamento de seu corpo, que foi esfacelado e cada pedaço colocado em postes por quilômetros da principal estrada de Minas. Sua cabeça foi exposta com destaque em uma caixa e conta-se que até sua casa foi queimada e se cobriu o chão com o sal, para que nem mato crescesse ali.

mao-memorial_de_america_latinaAo sair do Salão, entre diversas peças sobre a integração da América Latina e da “luta” de “seus povos”, podemos ver, na Praça Cívica, do outro lado da avenida que lhe corta, a famosa mão desenhada por Oscar Niemeyer, com o mapa da América Latina a sangrar em sua palma. A obra é uma homenagem em concreto armado (sem surpresa, vinda de seu autor) ao livro As Veias Abertas da América-Latina, de Eduardo Galeano, que foi a grande inspiração da esquerda latino-americana, com sua tese de que o continente amarga uma posição fraquíssima na geopolítica e na produção mundial graças ao imperialismo e ao papel subalterno que lhe legaram as potências mundiais.

Este simples passeio revela exatamente qual o problema do Brasil e de boa parte da América Latina. Os signos conflitantes. Oscar Niemeyer pediu a Cândido Portinari uma série de painéis sobre Tiradentes para retratar aquele importante momento da história brasileira. Niemeyer e Portinari, inevitavelmente, o tratam como herói e mártir. Por todo o resto do Memorial, uma das obras mais criticadas de Oscar Niemeyer, vemos exatamente o que Tiradentes mais odiava ser tratado, igualmente, como solução para nossa miséria.

Tirantes, qualquer brasileiro na sexta série o sabe, lutou contra a colônia portuguesa, que cobrava pesados impostos das atividades mais desconexas com a exploração de recursos naturais típicas do mercantilismo português. Tiradentes, obviamente, era dentista, e nada devia à Coroa por isso. Considerava que os escorchantes impostos exigidos para atividades como o comércio e os serviços eram tão malignos que ensejavam o primeiro grande movimento de independência brasileira de sua Metrópole.

Os tais impostos altissonantes eram de 20%. O famoso “quinto dos infernos”. Algo hoje quase risível, perto de nossa carga tributária 35,42% em 2013 (em 1986, nos estertores da ditadura, já era de 22,39%, e de lá para hoje, à exceção de 1995 e 2009, apenas aumentou). Isto descontando nossos gastos com estatais, com abertura de crédito bilionárias via bancos públicos para pagar as contas do governo, com diferença entre contas apresentadas e valor em caixa da ordem de trilhões pelo governo.

Figueiredo-MHN-TiradentesQual o sentido de apresentar o comerciante Tiradentes – digamos, um “coxinha”, destes que pregam livre comércio e “acreditam no Deus mercado”, como é o clichê da esquerda ao descobrir que existem pessoas que preferem liberalismo à tirania socialista – como herói, ao lado de monumentos e obras que já pregam o revanchismo histórico aliado ao vitimismo e exaltam a dominação da atividade dos indivíduos através de impostos, em nome da “igualdade”, ainda que na miséria?

Um mundo como o visto além da Cortina de Ferro, que só se descerrou aos olhos ocidentais pós-1989, ainda que insano em seu totalitarismo, ao menos é facilmente explicável aos grandes teóricos sociais, ainda em meados da década de 30-40. Hannah Arendt, Eric Voegelin, Thomas Mann, Ludwig von Mises, para não falar em Franz Kafka, George Orwell ou Anthony Burgess, já haviam todos compreendido sistemas revolucionários que destróem o passado, querem reescrever a história, dominar pela hegemonia e homogeneização, não permitindo nenhuma referência a outra forma de definição do que é bom e mau, certo e errado. Raros deles provavelmente entenderiam a loucura simbólica do Brasil.

Um adolescente que trate Tiradentes como um mero feriado para ir à praia provavelmente tem mais chances de salvação intelectual do que aquele “crítico” que acredita em tudo o que seu professor diz, por mergulhar seu potencial em símbolos conflitantes, rarissimamente conseguindo extrair deles uma teoria geral através de tamanhas contradições sobre bem e mal, certo e errado, o que fazer e o que não fazer.

Além de acreditar no que dizem e nunca fez sentido sobre a ditadura militar, toda a história brasileira e mundial cai num limbo inquestionável, que só pode fazer sentido ignorando-se seus personagens, movimentos e idéias e pintando tudo com a tinta monocromática da ideologia.

revolucao-francesaA Inconfidência Mineira, movimento que deu a morte e a posteridade a Tiradentes, é, no todo da história brasileira, algo basicamente inútil. Foi pontual, teve resultados inúteis, não gerou um grande movimento como ocorreria no século seguinte (que nem sequer nela se inspirou). Algo mais simbólico pela forma como foi narrada de boca-a-boca, aproximando-se o evento da narrativa bíblica (Tiradentes é sempre retratado com longos cabelos como as pinturas renascentistas de Jesus Cristo, quando, militar de carreira, sempre usou cabelo curtíssimo e foi enforcado com a cabeça raspada).

Sobretudo: ocorreu em 1789, o mesmo ano da Revolução Francesa, e o Brasil e seus intelectuais, já dominantes na forma como narrariam a História, precisavam de sua versão. Não à toa, Portinari retrata a Inconfidência exatamente com as cores da bandeira da França.

Usa-se justamente a rebelião de um grupo de comerciantes, ou seja, dos que são hoje chamados de “coxinhas” e que representam a vontade de um Estado pequeno, cuidando apenas da Justiça, ao invés dos gigantescos Estados dominadores da economia e planificadores da sociedade, tão desejados pela esquerda, para se defender os heróis.

No momento seguinte, a vasta maioria dos professores de História estará declarando que precisamos de um Estado total contra a sanha “neoliberal” (termo só usado por professores de História), que devemos taxar a fortuna dos ricos, que a classe média odeia o PT porque o PT, tão bondoso, deu seu dinheiro aos pobres em nome da igualdade.

A Revolução Francesa prometeu liberdade, igualdade e fraternidade perante o que foi chamado, também por intelectuais historiadores, de “absolutismo”, o poder total de um rei que representa o Estado. O famoso L’état, c’est moi. Exatamente ao contrário, a partir da Revolução, o poder do Estado sobre indivíduos apenas cresceu – cresceu tanto que, com a modernidade e as máquinas de propaganda, se tornou capaz até mesmo de convencer as pessoas de que se diminuírem suas riquezas e as derem para políticos estarão vivendo no melhor dos mundos.

panis-et-circenseOs tiranos, desde a Antigüidade, sempre deram migalhas ao povo retiradas do próprio pão que era deles taxado, e ganhavam apoio popular com isso. Os números de Tiradentes e de Dilma Rousseff mostram que a tese de Bertrand de Jouvenel está mais correta do que nunca: o poder de um povo acreditando em liberdade, ao mesmo tempo que em igualdade, um de seus maiores opostos, é sempre o poder de defender tiranos, corruptos, cleptocratas, a burocracia sobre a produção, a bajulação ao invés da desconfiança, a crença cega e fanática no lugar do pensamento individual, a propaganda tratada como verdade revelada e desinteressada, fato cabal e último.

Se uma tirania e a injustiça de tomar dos produtores para os burocratas foi sempre e universalmente reconhecida, bastou a ideologia suprema de Marx, curiosamente denunciador de “ideologias” e de uma suposta transferência de produtores para não-produtores, para o povo denunciar libertadores e adotar corruptos, totalitários e tiranos como “defensores da democracia” e “heróis do povo brasileiro”.

Ou olhamos para o passado e finalmente entendemos os símbolos que os homens de lá quiseram deixar de herança a nós, ou seremos presa fácil da ideologia que quer tornar as propagandas numéricas do PT em fatos indisputáveis.

Desconhecendo o que o passado nos ensina com nosso ímpeto revolucionário e progressista, estamos fadados a acabar como os revolucionários franceses: pregando a guilhotina para os inimigos do povo, ter a lâmina sobre nossos próprios pescoços. A confusão de símbolos, que precisamos restabelecer, tem conseqüências muito piores do que uma mera discordância.

A coerência, afinal, é o que salvaria qualquer pessoa de ser presa fácil do pensamento de manada – basta lembrar do fim de Tiradentes e aplicá-lo ao nosso presente para se entender quem está certo e quem está errado no conflito político desenhado diante de nossos olhos.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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