O sangue desses jovens ainda mancha a nossa época
O centenário da Batalha de Somme é uma ocasião propícia para lembrarmos de algumas das mazelas ideológicas do século XX e refletirmos sobre os atuais desafios do Ocidente
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Há exatos cem anos, no dia 1º de julho de 1916, teve início a Batalha do Somme, que durou até 17 de novembro do mesmo ano. Foi a mais sangrenta das campanhas militares da Primeira Guerra Mundial. Apenas no primeiro dia os britânicos sofreram 57.470 baixas, das quais se totalizaram 19.240 mortos, a maior e mais sangrenta em um combate em toda a milenar história do exército desse país. De acordo com Russell Kirk (1918-1994) no livro A Era de T. S. Eliot: A Imaginação Moral do Século XX (É Realizações, 2011), alguns dos primeiros poemas de T. S. Eliot (1888-1965) foram escritos à luz da carnificina que ocorreu em Somme, na qual o otimismo de muitos se decompôs junto com os corpos dos jovens soldados.
As crenças ingênuas do liberalismo clássico no progresso ilimitado do gênero humano, na paz perpétua, e no avanço do processo civilizatório foram descredibilizadas nas trincheiras da Primeira Guerra. Tais ideias foram manchadas pelo rio de sangue dos jovens mortos pela insanidade dos governantes. De certo modo, a terrível Batalha de Somme pode ser tomada como o marco simbólico do fim da ilusão sobre a possibilidade de salvaguardar a vida, a liberdade, a paz e a justiça por intermédio do moderno Estado nacional.
Devastadores foram os resultados da Primeira Guerra Mundial, que marcou a perda dos últimos traços de humanidade ainda existente na Europa, sendo um golpe final em tudo de positivo que foi construído gradativamente ao longo de séculos pela cristandade ocidental. O resultado direto do conflito mundial foi a ascensão dos regimes totalitários comunista na Rússia em 1917, fascista na Itália em 1922 e nazista na Alemanha em 1933, além da Segunda Guerra Mundial. Além de enfraquecer a identidade do continente, essa guerra entre as potências europeias teve uma outra consequência pouco notada pela maioria dos analistas, que foi desestabilização das inúmeras forças que impediam o avanço maometano sobre o Ocidente.
Uma das melhores analises sobre a verdadeira dimensão da Primeira Guerra Mundial foi oferecida por Winston Churchill (1874-1965), em uma breve nota que escreveu durante o período em que ocupou, entre 1919 e 1921, o cargo de Secretário de Estado da Guerra e das Colônias do Reino Unido. O parágrafo seguinte apresenta a tradução dessas reflexões do insigne estadista conservador britânico:
“Todos os horrores de todas as épocas foram reunidos, e não somente os exércitos, mas populações inteiras foram neles lançados. Os poderosos Estados envolvidos perceberam – não sem razão – que a sua própria existência estava por um fio. Nem os povos nem os governantes mediam seus atos, desde que fosse para vencer. A Alemanha, abrindo as portas do inferno, manteve a dianteira do terror; mas as nações atacadas, desesperadas e vingativas, seguiram-na passo a passo. Cada ultraje feito contra a humanidade e o direito internacional foi devolvido com represálias – muitas vezes numa escala maior e de duração mais longa. Nem a trégua nem a negociação apaziguaram o antagonismo dos exércitos. Os feridos morriam nas linhas de combate: os mortos desfaziam-se no solo. Os navios mercantes, os navios neutros e os navios-hospitais eram afundados, e os sobreviventes abandonados à sua sorte ou assassinados ao tentarem se salvar. Todos os esforços foram feitos para subjugar nações inteiras pela fome, sem se considerar idade ou sexo de seus habitantes. Cidades e monumentos eram estraçalhados pela artilharia. Bombas eram lançadas indiscriminadamente. Gás venenoso asfixiada os soldados. Seus corpos eram queimados por lança-chamas. Homens caíam do céu em labaredas ou eram lentamente afogados nas profundezas dos mares. A força de combate dos exércitos era limitada apenas pelo contingente masculino de seus países. A Europa e grande parte da Ásia e da África se tornaram um imenso campo de batalha, nos quais, depois de anos de luta, as nações e não mais os exércitos, se despedaçaram e dispersaram. Tortura e canibalismo foram os dois únicos expedientes que os Estados cristãos, civilizados e científicos, se abstiveram de usar ao final de tudo: eram práticas de utilidade duvidosa”.
O poeta Eliseo Vivas (1901-1993) afirmou que “uma das marcas essenciais da decência, hoje, é envergonhar-se de ser um homem do século XX”. Basta nos lembrarmos do ocorrido há cem anos próximo ao rio Somme, na França, bem como, dos campos de concentração dos nazistas ou dos gulags dos soviéticos, dentre tantos outros fenômenos típicos do século passados, alguns deles ainda persistentes neste novo milênio, para concordarmos com o poeta.
No livro A Política da Prudência (É Realizações, 2013), o já mencionado Russell Kirk lembra que, de acordo com Arnold Toynbee (1889-1975), a velha ordem civilizacional foi quebrada em decorrência do conflito europeu iniciado em 1914. Sem adotar uma perspectiva reducionista, podemos traçar as raízes de quase todas as mazelas de nossa época na Primeira Guerra Mundial, bem como nas ideologias que a motivaram. A moderna caixa de Pandora havia sido aberta.
Após o término da Grande Guerra Mundial, alguns idealistas sustentaram que a paz poderia ser mantida por intermédio de organizações internacionais, como a fracassada Liga das Nações, no período entre guerras, e, atualmente, a Organização das Nações Unidas (ONU). O resultado do plebiscito no qual a maioria dos súditos britânicos escolheu democraticamente pela saída da União Europeia, levou certos analistas a propagarem que a Europa retornaria ao mesmo contexto da década de 1930. Não há motivos reais para acreditar nessas análises. No entanto, mesmo que a apreensão desses comentaristas, de algum modo, correspondesse à realidade, a capacidade de em nossos dias a União Europeia impossibilitar um possível conflito militar se assemelharia ao papel Liga das Nações na tentativa de impedir a Segunda Guerra Mundial.
Sabemos que as primeiras inspirações para a criação do universo fantástico que ganhou vida na obra O Senhor dos Anéis (Martins Fontes, 2001) de J. R. R. Tolkien (1892-1973) surgiram no momento em que o autor lutava na Batalha de Somme. Mais uma vez a imaginação moral de uma obra de ficção consegue relatar melhor os problemas de nossa época do que os escritos de filósofos, historiadores, cientistas políticos ou economistas. Em nosso desolador ocidente contemporâneo, enquanto os orcs marcham sobre nossas cidades, muitos governantes agem de modo covarde e desesperado, assim como Denethor, o regente de Gondor. No entanto, um papel mais degradante é interpretado por alguns intelectuais, que traem a causa da verdade, em busca do poder, assim como ocorreu com o mago Saruman, o Branco.
O sangue dos jovens, desnecessariamente derramado na Batalha de Somme, ainda clama aos céus por justiça. Estaremos todos condenados se repetirmos os erros do passado. No entanto, ainda é possível redimir o tempo.
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