Pode falar “presidenta” ou é coisa de quem bate na avó?
Após Carmen Lúcia assumir a presidência do STF, começou uma discussão sobre o uso da palavra "presidenta". Gramática e dicionário respondem?
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O professor Pasquale Cipro Neto escreveu um artigo na Folha em resposta à ministra Carmen Lúcia, que ao assumir a presidência do STF, preferiu ser chamada de presidente, ao contrário de Dilma Rousseff, que prefere presidenta.
O artigo de Pasquale Cipro Neto está correto em sua inteireza, como de costume. Como Carmen Lúcia afirmou que é estudante e amante e amante da língua portuguesa, o professor Pasquale, data venia, explicou que a palavra “presidenta” existe, que não é o dicionário que determina (pelo contrário) e que é uma opção estética.
Pasquale não poderia se alongar mais em um artigo daquele porte, portanto não teria como explicar muito além da existência da palavra, já registrada como neologismo em um dicionário de 1913. Essa é, digamos, a gramática pura, normativa. Não se tocou ainda na questão do uso do vocábulo.
Nós já explicamos algo sobre “presidenta” em nosso último podcast (ouçam e assinem nosso feed). As palavras, em uso, respondem, obedecem e são utilizadas conforme ideologias e visões de mundo (pense-se em palavras como “liberal”, “Deus”, “repressão” ou “opressão”).
Como mulheres presidentes são raras (ao contrário de mulheres estudantes ou cartomantes), e como a palavra presidente, que é originalmente adjetivo, passa a ser usada como substantivo (o que é comum a partir de particípios), pode-se fazer essa bricolagem: para frisar o feminino, que pouco é notado na fala, inventa-se a feminilização de uma marca comum aos dois gêneros (questão trans à parte).
A língua é mesmo assim, e português é uma das línguas com mais exceções às regras que existe (qual o feminino de elefante?). O uso é que determina o que vira regra, ao contrário do que crêem os ideólogos do “preconceito lingüístico”.
O estudo do uso da língua é feito pela Pragmática, uma área da Lingüística, ciência bem pouco conhecida fora dos cursos acadêmicos de Letras. Infelizmente, é uma área tomada por ideólogos radicais em sua maioria. Nada mais comum do que lingüistas, com uma teoria poderosa, falarem bobagem que justamente a Pragmática corrigiria. Os críticos comuns de Pasquale nos cursos de Letras são exemplos abundantes. Ou abundantas.
Pela Pragmática, notamos que o uso popular sempre permitiu formações como “presidenta” (não falamos “minha ídala”?). O uso formal, no caso de um cargo como o de Dilma, é que precisa de suporte maior, cerceando os vocábulos “permitidos” a um escol de melhor cepa (!). Com efeito, palavrões são dicionarizados: um presidente não é convidado a utilizá-los por isso. Nem se inventa neologismos a torto e a direito se se é presidente.
Urge se escorar em um clássico, um livro que utilize o vocábulo, algum uso da língua que mostre seu potencial de sobrevivência e seu valor como palavra capaz de demarcar algo da realidade. O vocabulário comum do povo é confuso, tem limites vaporosos, confunde com facilidade a grande obra do mestre Picasso com a grande pica de aço do mestre de obras.
Um presidente, mesmo que sem domínio da língua portuguesa culta, deve falar com clareza, sem confusão de significados. Sem abusar daquilo que Ezra Pound chama de “linguagem de diplomatas”, sempre sorrindo e congratulando diante de câmeras, mas trazendo uma faca escondida para se golpear pelas costas. Neste sentido, Lula, que dificilmente acerta um plural, dá de 7 x 1 em Dilma Rousseff. Se é que tem 1 no placar.
Portanto, existe algum grande escritor que, com bom uso, utilizou o vocábulo “presidenta” de uma maneira que, digamos, o justificasse? Pelas redes sociais, citaram Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Atentando-se ao dicionário (existência) e ao clássico (referência), tudo em ordem. A cobra começa a morder o próprio rabo quando atentamos para o uso.
Nossa colunista Paula Rosiska analisou o caso em sua página:
De fato, Machado de Assis utiliza a palavra presidenta no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas o significado está longe de agradar à militância esquerdista, que deu ao termo um sentido feminista, de “empoderamento”: tratar-se-ia apenas da mulher de um presidente, não de alguém com poderes de chefe de Estado ou de qualquer outra coisa.
É como o feminino de embaixador, que no dicionário aparece como embaixatriz (a mulher que se casa com um) e embaixadora (a que exerce a função). A palavra presidenta está, no romance de Machado, mais próxima de embaixatriz.
Confira.
— Você é rico, continuou ele, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário comigo.
Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto… Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que me pedia também a mesma coisa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as coisas de um modo administrativo.
Se houvesse algum uso minimamente “normal” para a forma presidenta, tudo estaria dentro dos conformes. O problema é que o uso de Machado, um dos prováveis responsáveis pela dicionarização, é bem menor – diga-se, quase depreciativo – da mulher. E nem é o mesmo cargo (como embaixadora e embaixatriz).
Sobra como único motivo a ideologia, citada por Paula Rosiska. Olhando-se apenas para o dicionário e a referência, os defensores da forma presidenta, que são basicamente a militância do PT (pessoas tão separadas na sociedade quanto água e óleo), tentam dar um “empoderamento” dicionarizado, sem perceber que o sentido (estudado pela Semântica) do termo fica quase oposto.
Pelo pensamento ideológico, como analisamos por aqui, tenta-se recuperar algo do pensamento mágico, acreditando-se que se cria uma realidade através de palavras mágicas. Um Creo materia de esquerda.
O que acabam fazendo é delimitando o usuário do termo. Forma-se o chamado shibboleth (analisado em nosso artigo de estréia do site), uma palavra que não tem referência no tecido do real, mas delimita o falante como pertencente a um grupo. Afinal, dicionarizada ou não, alguém diz “presidenta” sem ser para Dilma sem ser petista e, ademais, sem advogar pelas causas culturais defendidas pelo PT, como feminismo, “empoderamento”, progressismo etc?
Acho muito loko isso de a pessoa falar “neoliberal” e eu já ter certeza da opinião dela sobre Maria Bethânia.
— Ápyus | Use máscaras PFF2 (@apyus) August 27, 2014
No uso, portanto, há mais do que dicionário e referência. Palavras são usadas para ideologia. Apesar de Pasquale Cipro Neto estar 100% correto no que afirma, não se trata apenas de uma questão estética, mas também ideológica. Pense-se em chamar as ilhas Falklands de “Malvinas”, ou a diferença entre chamar um negro de black ou de nigger em inglês e teremos exemplos gritantes da diferença.
Neste sentido, presidenta continua dicionarizada e pronta para a verbalização. Contudo, no uso, que deixa entrever a ideologia pelos rasgos da meia calça, a idéia do “empoderamento” não consegue disfarçar a alienação transbordante, e é difícil uma mulher aceitar ser chamada de presidenta sem ser associada justamente a Dilma Rousseff – o que faz a maior parte das mulheres brasileiras soltar um belo “Ahn… ehrr…”
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