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Violência

Indignação: Menino oferece cofrinho a assaltantes, mas não impede assassinato do pai

Notícias de adolescentes mortos em conflitos com a polícia causaram comoção na mídia. A notícia de um menino que perdeu o pai foi ignorada.

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Menino oferece cofrinho durante assalto para impedir assassinato dos pais, mas bandidos matam seu pai mesmo assim.

O país parece ter se comovido com casos de adolescentes mortos, sobretudo em confrontos com a polícia. São estes os casos que pautam o noticiário recente, reiteradamente. Uma história de um menino que ainda não chegou à adolescência passou despercebida nos últimos dias, sem causar indignação em ninguém.

Três ladrões armados invadiram um sítio de uma família em Juquitiba, na Grande São Paulo. O marceneiro José Eleandro, ao ouvir o som dos bandidos, acostumado aos freqüentes assaltos na região, pegou uma arma para proteger sua família. Os assaltantes, ao virem a arma, desconfiando de que o homem fosse um policial, atiraram contra seu coração.

O assassinato ocorreu diante dos olhos do filho de José, de apenas 6 anos. A mãe do menino também estava presente e também foi ameaçada de morte. O menino, apavorado, ofereceu seu cofrinho de moedas aos bandidos, pedindo para que fossem embora. Sem saber o que fazer, o bando abandonou o local, ao menos sem assassinar também sua mãe. Os bandidos não levaram nada após matar o pai do menino.

Além do contraste doentio entre um pedido de clemência tão belo quanto desesperador, em sua inocência coberta de sangue, digno de uma tragédia grega ou de um romance de Cormac McCarthy, há um contraste fora da notícia que é capaz de marejar olhos com ainda mais facilidade.

Qualquer um que trave conhecimento com essa história, tão simples quanto profundíssima em terríveis significados e dolorosíssimos sentimentos, espera que ela se repita na mídia à exaustão, gerando um grande debate nacional e uma tal comoção capaz de dirigir os sentimentos do país justamente para as reações naturais de indignação.

Mas, pelo contrário: os mais de 64 mil homicídios por ano (mais do que um assassinato a cada 10 minutos) no Brasil anestesiaram a população até para este escol de notícia chocante, que já não consegue mais chocar. Confirmado o dito atribuído a Stalin, após alguns milhares, um homicídio, mesmo uma história digna de Dostoievsky ou Edgar Allan Poe, vira mera estatística.

No entanto, ao invés de um silêncio sepulcral completo, científico e numérico, o que vimos foi uma torrente de notícias repetidas ad nauseam exigindo indignação da população por mortes de adolescentes… que morreram em confronto com a polícia.

Alguns, sobretudo jovens em seus pensamentos hedonistas, ainda crêem que a mídia tem uma legítima preocupação com vidas de pobres, quando tudo o que quer é uma pauta pela desmilitarização da polícia. Ainda que alguém acredite em tal devaneio (crença essa que só pode ser obviamente derivada do consumo de reiteradas notícias escolhidas justamente para tal efeito), não parece ser inteligente ignorar notícias brutalmente importantes, que podem afetar a vida de qualquer um (e sobretudo de pobres), quando elas envolvem justamente a maioria honesta e trabalhadora. Afinal, como se poderia compreender mais um problema sabendo-se menos, e só volvendo os olhos para o que a mídia quer que você veja? Ainda mais se sabendo que a indignação é o sentimento político número 1 a ser manipulado hoje.

Toda notícia a gerar comoção, indignação, protesto de hashtag no Twitter, reportagem especial no Fantástico, discussão intelectual na Fátima Bernardes e textões pelo Facebook segue o mesmo script: confronto de policiais com jovens que, enquanto não são esclarecidos, são explorados dando-se a entender que policiais estão executando jovens nas ruas, mesmo quando elas lhes oferecerem o cofrinho de moedas para que estes malvados PMs não assassinem crianças indefesas que não oferecem risco.

A Rede Globo já fez um escândalo após três “menores” terem sido mortos pela polícia, sem nenhuma referência em suas manchetes (mesmo após divulgação de imagens) dos “adolescentes” atirando com fuzis em plena luz do dia no Rio de Janeiro.

Uma menina morta por tiro dentro de um colégio mereceu uma longa campanha após o caso do menino do cofrinho. Apesar de uma guerra de fake news ter se instalado sobre quem e que arma matou a garota, não há nenhuma menção em nenhum lugar na grande e velha mídia de que a garota pode ter sido morta por traficantes –  menos ainda se fez uma campanha contra traficantes, ou para que a população não os financie. Ninguém cogitou que, sem traficantes, a polícia não estaria ali, e que os traficantes lá se instalaram antes.

Os casos assim prosseguem sendo noticiados. A população, anestesiada por tanta violência, começa a aceitar placidamente a manipulação de seus sentimento de indignação para a direção que a mídia quiser.

É uma atitude patética: o pathos, as paixões que o homem sofre, são o alvo da doutrinação política moderna, como C. S. Lewis já nos ensinara em seu clássico A abolição do homem. Uma sociedade que não sabe com o que se indignar, terceirizando seus sentimentos apenas ao grito permitido pelo modismo coletivo do momento, certamente é a mais manipulável das sociedades.

Poderíamos pensar em Liana Friendenbach, Felipe Caffé, menino João Hélio, dentista Cinthya Magaly, menino Vinícius e tantos outros inocentes brutalmente assassinados como mártires, para que vivêssemos uma vida mais segura com leis melhores. Mas tomamos o caminho contrário: a indignação através de “-ismos” apenas nos transforma em uma sociedade doente. E deixamos nossos inocentes morrerem mortes sem sentido e desnecessárias, recusando-nos até a oferecer um cofrinho de moedas em troca.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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