Mulher Maravilha: A dura vida de uma heroína em tempos de mimimi feminista
Mulher Maravilha é um dos melhores filmes de super heróis já feitos – mas precisa ser compreendido pela sua mitologia, não por ideologias.
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Há uma dificuldade metalingüística insuperável em se fazer um filme da Mulher Maravilha em 2017: hoje, qualquer referência a uma mulher é entendida como feminismo, fazendo com que a classe falante – em era de redes sociais, muito maior do que a antiga intelligentsia – suscite uma caça aos bruxos para forçar uma luta de gêneros modelo Show da Xuxa.
Mulher Maravilha, o filme, é exemplo máximo da era do mimimi: até mesmo quando seu trailer foi exibido, feministas, como se importassem, reclamaram de que a atriz israelense Gal Gadot, no papel da protagonista, aparecia com… axilas depiladas. Como se mulheres ocidentais tivessem costumes feministas como não se depilar, ter aversão ao banho e aos cuidados com a beleza e viver de ressentimento com homens.
O primeiro filme da mais antiga e famosa heroína dos quadrinhos é, ironicamente, um dos mais masculinos da nova safra de filmes das últimas décadas. Mulher Maravilha é heroína de um filme violento, em que homens praticamente só aparecem na primeira cena. Em plena Primeira Guerra Mundial, mortes são incontáveis, e a protagonista não sofre da visão politicamente correta da censura americana do século XX de que super-heróis não matam – e nem desejam matar – seus inimigos.
Mais do que isso: seu enredo trata de mitos, virtudes e até mesmo de uma espiritualidade perdida na era burocrática, tecnocrática e materialista era contemporânea. Sem conseguir olhar para uma tela e ver o que está diante de seus olhos, a era da ideologia, da problematização e do mimimi entra numa insossa e broxante disputa para verificar se o filme é “feminista” (um termo que pode significar qualquer coisa) ou não.
Com a atual modinha de falar em “empoderamento” (empowerment), foca-se sempre em um processo político de dar algo específico a mulheres tirado de homens. Mulher Maravilha não é nada disso – Diana é poderosa pelo motivo que tornou qualquer pessoa poderosa na humanidade antes dessa modinha – e por isso entra na aborrescente dialética do ressentimento.
Sua diretora, Patty Jenkins, declarou que não buscou fazer um filme “de mulheres”, e tal visão transparece cristalinamente em sua obra: é um filme que não é feito para ideologia ou para um público segmentado, mas sim para ser agradável ou bom por seus méritos próprios. Como filmes de verdade o são. Feministas ainda o criticaram porque Gal Gadot é israelense, e a esquerda, cada dia disfarçando menos seu anti-semitismo, acha que isto é um acinte aos pobres palestinos, que tão bem tratam as suas mulheres.
Filmes épicos são bons quando resgatam os valores da épica: a virtude diante de situações adversas, os enredos que não se deslindam facilmente, a tensão antes de um objetivo realizado. Mulher Maravilha é um filme incrível exatamente por isso, e não por “ser um filme sobre uma mulher” (Mulher Gato com Halle Berry é “um filme sobre uma mulher”).
Para um mundo sem epos, em que toda a grandiosidade de uma vocação enfrentando uma grande ameaça é reduzida a “há uma mulher no roteiro para chamarmos o filme de feminista e fazer uma propagandazinha da esquerda?”, é o sobejante para que colunistas sem mais o que fazer disparem pérolas como “Filme da Mulher-Maravilha faz retrato preciso de feministas modernas” (sic).
O que Mulher Maravilha faz está longe do discurso. Daquela mania de redes sociais de dizer que “lutar” é repetir bovinoidemente um bordão e uma hashtag. Mulher Maravilha de fato luta. De cair na porrada. Treina antes, estuda, se esforça, abdica dos prazeres e da platitude do cotidiano para ser alguém além. Mesmo tendo super poderes, é uma das lições que o filme deixa: mesmo super heróis precisam se esforçar.
Diana nasce na ilha fictícia de Themyscira, cidade-estado grega habitada tão somente por mulheres. A referência a Lesbos é óbvia, embora a cidade grega pouco ou nada tenha a ver com lesbianismo, como se crê. É onde o filme começa a tratar da mitologia.
Eric Voegelin, em A Era Ecumênica, quarto volume de Ordem & História, o maior livro de filosofia política do mundo, analisa a idéia numérica encontrada em mitos, sejam os catálogos dinásticos da Epopéia de Gilgamesh e do Antigo Testamento ou as gerações de deuses primordiais, titãs e homens da Teogonia grega. Na Palestina, Babilônia ou Grécia, os cálculos numéricos dos períodos míticos (não-históricos), onde se encaixam cidades como Lesbos (ou a versão ficcional de Themyscira) apontam justamente para um éon, uma era do mundo de 2.160.000 anos. Conclusão à que a ciência moderna dá mais respaldo do que refuta.
Na ilha de tempo mítico não há morte, e, portanto, não há reprodução, ao contrário da visão moderna sobre Lesbos, como no mundo antes da serpente da árvore do bem e do mal (Diana é filha de Zeus). É lá que Diana faz seu treinamento, antes de seu mundo fora da história, nem no passado e nem no futuro, ser invadido pelo maior acontecimento histórico possível: um piloto da Primeira Guerra, Steve Trevor (Chris Pine) fere a bolha de proteção temporal da ilha e cai em Themyscira.
Diana então atende a uma vocação: sabendo que a paz da ilha era ameaçada por Ares, deus da guerra, resolve que tem um chamado a cumprir: acompanhar Steve Trevor e ir para a guerra, para poder matar Ares de vez ao invés de se refugiar no conforto de sua isolada civilização. Não é exatamente algo muito parecido com o que fazem as feministas modernas.
Diana acompanha Steve rumo a Londres da década de 10, que ainda não havia se livrado completamente da moda e hábitos vitorianos. Steve é piloto-espião que precisa entregar segredos de guerra que visualizou do inimigo para seu Estado Maior, enquanto Diana, nada burocrática e 100% guerreira (Diana é deusa da lua e da caça na mitologia romana), não entende por que não estão indo para o front da guerra buscar Ares.
É onde vemos a mais agradável dialética do filme: o piloto Steve, histórico, mundano, com qualidades e defeitos do apogeu da modernidade industrial, cujos méritos são gastos na burocracia, na linguagem escorregadia da diplomacia e da etiqueta exageradamente cerimoniosa, ao lado de Diana, a Mulher Maravilha que nem entende em que mundo está, apesar de falar mais línguas e entender mais de combate do que todos à sua volta. Sua natureza é a franqueza direta e combativa de quem não se subordina à moda e às comodidades históricas, atendendo à sua vocação como se ouvisse o chamado do Universo, a pulsão cosmológica.
É a divisão entre um pensamento moderno, secular, burocrático e profano ao pensamento tradicional, atemporal, virtuoso e sagrado. Mulher Maravilha mostra a religião em conflito com o mundo materialista, ideológico e técnico de maneira jamais vista, ainda mais em um filme “jovem”.
Diana e Steve não conseguem convencer o Supremo Conselho de Guerra, sobretudo Sir Patrick Morgan (David Thewlis), que prefere negociar um armistício com o Exército alemão. Mas, com ajuda de alguns recrutados privados para a missão, vão finalmente para o front, e é onde Mulher Maravilha se torna um filme nada preocupado com “ideologia feminista” ou mesmo em ser um filme de mulher: a Primeira Guerra é mostrada em seu horror e violência, e Diana não é exatamente a heroína preocupada em fingir que seus inimigos precisam apenas de punição jurídica, ao invés de pararem de respirar.
Seus inimigos são ainda mais curiosos, para um mundo focado no politicamente correto. O general Erich Ludendorff (Danny Huston) está desenvolvendo uma variação do gás mostarda numa instalação militar do Império Otomano (aliado da Alemanha na Primeira Guerra), junto à química espanhola Isabel Maru, a Doctor Poison (Elena Anaya), que pouco disfarça as referências muçulmanas. Em tempos de Estado Islâmico, falar do Império Otomano, o último califado que o ISIS pretende reinstalar, só seria mais chocante se a esquerda realmente soubesse algo da história que tanto acredita entender.
Mulher Maravilha tem vários dos elementos da boa épica: o chamado, a vocação, a missão que nem sempre é clara (Diana nem sequer sabe quem é o Ares que precisa matar, afinal, no mundo histórico, o “deus da guerra” não é tão individualizado e físico quanto na mitologia fora do tempo), o treinamento, as virtudes (os melhores diálogos do filme são as broncas que Diana dá no mundo que não forma guerreiros, arrancando risos de uma platéia que teria horror de se alistar no Exército), os companheiros, a dialética dos conflitos, o perigo e a superação.
Infelizmente, numa era ideológica, séculos de conhecimento são jogados no tanque do pastiche racionalista, e só se tentou assistir Mulher Maravilha não como uma metáfora religiosa, como tantos conseguiram notar (aqui, aqui, aqui, aqui, ou até uma crítica ao cristianismo do filme aqui), mas como “um retrato feminista”. Até onde a ideologia consegue nos cegar e nos retirar da realidade e beleza do mundo?
Alerta de spoiler
O trecho a seguir revela o roteiro do filme. Só continue lendo se já o tiver visto, ou se não se importar em conhecer o seu final.
Se Mulher Maravilha não conseguiu ser apreciado em sua dicotomia entre o pensamento mítico-tradicional-religioso e a burocracia tecnocrata e afastada da concretude típica da modernidade, maravilhosamente (!) misturando o sagrado e o profano em uma história com aventura, humor e perigo, foi ainda mais mal compreendido ao apresentar referências religiosas mais claras.
Sobretudo em suas últimas cenas. Diana percebe que nem mesmo matando Ludendorff, que Diana julga ser Ares, consegue acabar com a guerra.
Quem se revela como Ares (e, portanto, irmão de Diana) é justamente Sir Patrick Morgan, que havia pedido por um armistício. Diana não compreende: em seu pensamento mítico, a guerra é culpa de Ares e basta derrotá-lo. No mundo dos homens, entretanto, Ares é apenas a inspiração primordial. A guerra, afinal, é escolha humana, e não há como fazer os homens retornarem ao mundo pré-histórico de Themyscira/Lesbos.
Novamente, a diferença entre pensamento mítico e secular (temporal) confunde tanto a semi-deusa quanto os humanos, assistindo a batalha sem compreendê-la.
Se o pensamento tradicional (Eric Voegelin) e a dialética entre sagrado e profano (Mircea Eliade) já foram trabalhadas em Mulher Maravilha, faltou a dinâmica do sacrifício, que aprendemos com René Girard (já que, em nosso tempo secular, não conseguimos ler os Evangelhos e entendê-los).
Steve percebe que o gás mostarda vai explodir inevitavelmente, e pensando em algo maior do que sua vida material, atende a uma nova vocação. Coloca todo o gás em um avião e o leva a uma grande altura, sacrificando-se no processo, mas salvando a vida de milhares de pessoas.
Enquanto isso, Diana, em sua luta com Ares, também percebe que, sendo ambos filhos de Zeus, não terão força para destruir um ao outro. Sua métis, sua astúcia para criar uma artimanha para vencer, terá de ser outra: a luta final entre a Mulher Maravilha e Ares é justamente a superioridade do perdão sobre a vingança, o auto-sacrifício contra a auto-preservação egoísta, inclusive com os braços abertos numa referência nada implícita a Jesus Cristo. É o filme em que uma semi-deusa grega se torna cristã.
A guerra, afinal, no mundo dos homens, é coisa humana. E Diana, já tendo realizado sua transformação em Mulher Maravilha, aprende uma lição de humildade: não é possível querer salvar a humanidade, quando a humanidade guerreia para abdicar de seus salvadores.
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