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Arte

Parem de tentar comparar os rabiscos no Santander com Bosch e Caravaggio, seus analfas

Tentando justificar sua ideologia, jornalistas tentam comparar as porcarias no Santander a grandes artistas. Algo pode ser mais burro?

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A trama é a reprise gravada em VHS de videocassete 2 cabeças de alguma novela ruim no Vale A Pena Ver De Novo: alguém tenta fazer algo “chocante” que só causa bocejos (idéia tosca, técnica ruim, execução péssima, resultado que só agrada maconheiro) e logo sai jornalista de tudo quanto é saída de esgoto para aquilo que passaram a considerar a função mais primordial do jornalismo: explicar ao povo como eles estão atrasados e são preconceituosamente obscurantistas, e certo mesmo tá algum mané revoluça de apartamento que super sabe dos seus problemas existenciais com contracheques, filhos indo pra escolas pra ficarem ainda mais retardados e você tomando tiro em troca de celular de R$ 500 parcelado em 24 vezes.

Para o público leitor de notícias, a raça de talento e vontade mais desperdiçados da humanidade (que até hoje não tem tempo para terminar Em Busca do Tempo Perdido, mas sabe de cada filigrana sobre alguém desimportante na Câmara dos Deputados debatidos e rebatidos em todas as redes sociais), o caso da exposição Queermuseu do Santander, com imagens de zoofilia, pedofilia e demais imagens “artísticas” baseadas na lacração, ninguém decepcionou: bastava saber do que tinha acontecido para, imediatamente, caçar todos os jornalistas de sempre que eles estariam em monobloco, monoliticamente, monotematicamente e mononeuroniomente repetindo em uníssono o acorde monótono da lacra-revolução. Fosse Rita Lisauskas ou Marcelo Tas, fosse Mônica Waldvogel ou Marcelo Rubens Paiva, todos nós esperávamos que eles fossem óbvios e eles, obviamente, foram o óbvio mais ululante.

É o famoso wishful thinking, uma das expressões que mais fazem falta na língua portuguesa (junto a accountability motherfucking): se você deseja que algo seja real, você fala como se aquilo já fosse real, para se tornar real. Uma espécie de pensamento positivo auto-ajuda aliado à aula de chacras com Eliane Brum e semântica formal com Emir Sader.

wishful thinking no caso pode ser resumido ao desejo revolucionário (todo progressista é um revolucionário tamanho Danoninho) de jornalistas serem os condutores de uma sociedade livre de “preconceitos”. Assim, o jornalista é um rei-filósofo platônico, um Lenin que não pega mal, um maestro que não sabe harmonizar o som de uma tuba com o de um oboé, mas que guiará a sociedade com seu ímpeto cidadão para um futuro glorioso e todos irão achá-lo muito legal.

O melhor companheiro para o wishful thinking é um pouco de conhecimento. Quando o homem se sabe ignorante, não tenta dar tanto pitaco no funcionamento do mundo. Quando tem um pouquinho (quando é jovem, por exemplo), vai esmagar toda a realidade para caber em sua ótica.

Cupido recebido por Anacreonte

Se o jornalista ouviu falar em nomes como Hieronymus Bosch, Caravaggio, Pietà ou Cupido Recebido por Anacreonte (ah, my bad, essa não se aprende nas aulas de educação artística do ensino médio), já sai querendo dar carteiradas e aulas de “arte”, tema que ocupa mais ou menos 0,00005% do seu tempo (nas férias, quando perambula pelo Louvre com cara de quem está entendendo menos do que o japonês de camisa havaiana tirando foto de tudo). “Ah, mas no Renascimento também tinha arte com pedofilia e na Idade Média com zoofilia!”

Assim, achando-se a última tubaína da favela por se lembrar daquela aula de Marcel Duchamp em que a sala inteira ficou rindo do mictório e pensando oh my God what the fuck am I doing here e desenhando pirocas voadoras no caderno (com muito mais técnica do que Marcel Duchamp, naturalmente), o inteligentão começa a falar de “arte conceitual” (99% da produção “artística” atual) e que “a obra causa reflexão” (você já “refletiu” diante da Capela Sistina?) e que nossos conceitos estão errados.

Bem, para um retrógrado reacionário preso na Idade Média, embebido em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, basta pensar no que os “obscurantistas da Idade das Trevas” perceberam sobre como a mente forma um conceito.

Primeiro, há os dados apreendidos da realidade. Pela capacidade de extrair idéias de coisas, forma-se a imago, uma imagem mental do objeto. A partir de vários objetos distintos, mas com semelhanças, forma-se o verbum mentis: a expressão, manifestação ou locução intencional que a mente propõe a si mesma do objeto. Pense agora num gato e entenderá.

Ora, o sensível dado in bruto é o phantasma, Do phantasma extraem-se as notas esquemáticas. A notio, a noção já esquematizada, é a species (o complexo de notas). É por isso que a palavra “noção” é geralmente usada dentro de uma hierarquia: “Você não tem noção do que eu vi!” ou “Ele é um sem noção!”.

É quando entra em cena a cognitio: a cognição pode ser sensitiva ou intelectual. A sensitiva é comum a animais e homens, enquanto a intelectual é coisa até de homens que são uns animais. É, basicamente, o que conseguimos através dos órgãos dos sentidos. Já a intelectual, ou simplesmente intellectio, extrai dos objetos o que é eidético, organizando-na mente conforme notas sistemáticas dela própria.

É após muita intelecção, com vários objetos, sistematizados e hierarquizados, que conseguimos extrair um conceptus, um conceito. Pense que você precisou ver vários gatos, de várias cores, tamanhos, formatos, raças etc, para poder ver um gato com só três patas ou mesmo roxo com bolinhas amarelas na sua frente para poder dizer: “isto é um gato!” – você já tem o conceito de um bem formado.

Pietà, de MichelângeloNo caso da arte, toda a “arte conceitual”, na prática, não tem conceito nenhum. Você pode passar a vida visitando o Queermuseu do Santander, o mictório do Duchamp, as músicas dos Tribalistas e os livros de Chico Buarque (quem lê aqueles lixos?) que você nunca vai formar um conceito do que é que a humanidade chamou de “arte”: não há dados sensíveis a serem inteligidos e formar a arte de Caravaggio, Hieronymus Bosch, a Pietà pela cognição de quem vai “discutir” e “refletir” sobre a “arte” vista nessas exposições.

“Ah, mas a criança viada é tirada de um Tumblr” – exato, meu amigo. Eu vejo Tumblr pra ver porcaria: se quisesse ver coisa que presta eu estaria lendo Benedetto Croce falando sobre Estética. Se você quer dar carteirada de sabichão, pelo menos admita que você só entende de Tumblr mesmo. Deixe a arte para os adultos.

“Ah, mas Bosch pintou zoofilia” – até a própria técnica dele escancara (notio, lembra?) uma diferença brutal: sua arte não é apologia (bem o contrário), mas antes mesmo da imaginação moral da arte (ninguém só quer a arte moral), trata-se de saber se aquilo que se vê é arte ou mero capricho. Na arte conceitual sem conceitos, só se vê gente enrabando uma cabra sem nenhuma razão além de chamar atenção. Se isso é bocejativo, chato e pereba para adultos, colocado para crianças só significa a velha revolução (velhíssima, jovens progressistas!) que tenta propagandear aquilo como algo lindo, digno de se estar em um museu.

Tivessem os intelectuais, jornalistas, celebridades e retardados no Facebook noção, e soubessem trabalhar com conceitos em vez de palavras com significante chocante, mas usadas sem nenhum significado, saberiam hierarquizar fatos, e extrair conseqüências até mesmo dessa hierarquia e não seriam meros peões reagindo imediatamente a palavras ocas (falou em atacar a família e lá estará a turba enfurecida ensandecida defendendo, antes mesmo de saber o que é).

Totentanz - Dança dos mortos

E muito menos tentariam dizer que a Pietà deveria ser proibida porque se organizou um boicote ao Santander por propagandear a “criança viada”. Ou que Bosch e o Queermuseu tem o mesmo valor para crianças. Ou que… bom, qualquer coisa que Rita Lisauskas tenha escrito.

Se você não sabe diferenciar uns rabisquinhos toscos só pra dizer “uhhh, olha, é uma criança viada, como eu acordei bandido contra a família” de Caravaggio, meu amigo… não tente dar carteirada. Porque umas cadernadas pra estudar é do que você mais precisa. E nem tente dizer que quem sabe muito mais do que você é um “obscurantista medieval”. Porque eles sabiam muito mais de arte, de realidade, de filosofia – e de ser chocante – do que você e suas pichações pra adolescente.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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