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Larga de ser hipócrita: ou você aglomerou, ou tá preso em casa desde março

Vamos falar a verdade que TODOS sabem, mas ninguém admite: faz mais de meio ano que todo mundo sai de casa – a diferença é que celebridade e político aglomera em ilha particular

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Os restaurantes estão abertos. A razão é que as pessoas estão comendo dentro deles. E as pessoas estão comendo porque estão com fome. É o ciclo da vida. E todos comem sem máscara porque é bastante difícil enfiar uma garfada de arroz com feijão e farofa na boca de máscara (situação bem diferente de um vírus microscópico, minúsculo até para o tamanho de uma bactéria, que pode entrar pelas cerdas de sua máscara sem nem ficar sabendo que você está mascarado).

Gente rica e poderosa, como jornalista, político e youtuber com conteúdo sexual para crianças, resolveu chamar isso de “aglomeração”.

Bem-vindos ao terminal Brás, feras! Bem-vindos à estação Central do Brasil! Sejam todos bem-vindos à realidade da maior parte do público que só lhes dá audiência por falta de opção, eu serei o seu guia. Sabem o que é “baldeação”, que você faz na Sé ou na Estácio?

A propósito, a entrada no busão é por aqui, aquele é o cobrador – ele fica confinado aglomerado com 140 pessoas e não pega peste chinesa por milagre. Ou porque tá tomando ivermectina escondido, enquanto vocês arrotam superioridade dizendo que um cientista lá no Cafundó do Judas disse que não funciona. Ou porque tá imune de tanto aglomerar. Você escolhe: de qualquer forma, nós estamos certos, e você, errado.

Ou você sabe que só precisa dar uma volta no quarteirão para ver que a vida já voltou ao normal, ou você está TRANCAFIADO em casa desde março, quando a peste chinesa nos atacou. Tertium non datur.

Mas é TRANCAFIADO mesmo, sem nem abrir a janela. Provavelmente você não veste um calçado há 9 meses – deu tempo de uma gravidez inteira, com todos os ultrassons e exames de toque sendo realizados virtualmente. iFood? Veja bem, só se o entregador deixa na calçada. Caso more em prédio, calçada do prédio, depois o porteiro pega e deixa na sua porta, e depois você pega quando ele for embora.

Fique em casa: deixe um motoboy morrer por você.

Não precisa perguntar como o porteiro foi parar no seu prédio – de metrô ou ônibus – o que importa é que você diga que não aglomera e faz home office e segue os protocolos do Atila, esse gênio. Ele talvez se teleporte. Quem se importa com essas questões é negacionista de extrema direita. Não conhecem a ciência. Ela está no Twitter e na Globo News.

Ou você está nessa, ou não tem como reclamar que alguém comeu ou nadou sem máscara (sério, teve manchete do Estadão nesse nível de estupidez!). Ou criticando que as pessoas recusam a ciência do “Fique em Casa”.

Esse negócio de “evitar aglomeração” existe em dois lugares: nos discursos do Doria e na Globo News.

Claro, talvez você more numa casa de 1 km² como o Felipe Neto quando não está jogando o último futebol (de vários) do ano, mas caso você seja uma pessoa normal, só precisa dar uma volta pelo quarteirão para ver que o ponto de ônibus tem gente, que o metrô continua lotado e é preciso encolher a barriga e respirar em ritmo cadenciado com todo o vagão, que o cheiro de povo continua impregnando as ruas, que nem toda caixa de supermercado, enfermeira, vendedor de máscara e pedreiro pode fazer home office.

Nunca a vida real – esta, porta afora – foi tão diferente do discurso pasteurizado e fordianamente criado das redes sociais e da grande mídia, com todo mundo se repetindo para ver quem é o mais anti-aglomerativo, o mais caseiro, o mais feminista, o mais anti-racista, o mais progressista, o mais mascarado, o mais científico, o mais 3 milhões de mortos até agosto.

Todo mundo sinalizando sua virtude (porque vocês não traduzem essas expressões e colocam em uso corrente também? só vale “cultura de cancelamento”?) sobre ficar em casa e evitar aglomerações. Como se a vida de 90% do país fosse a de um estudante universitário encostado ou de um youtuber nerd. Como se os jornalistas fazendo aparição de home office, às vezes de máscara na TV, não tivessem mandado uns 50 trabalhadores braçais em sua casa construir o home studio.

Nós só vemos o óbvio que vocês não conseguem esconder. Nós sabemos como a vida funciona. E nesta realidade, come-se e toma-se sorvete sem máscara. Pega-se ônibus, e sabemos que não tem ser humano que não dê uma afrouxada marota na máscara, transformando-a apenas em um mecanismo anti-multa e mais nada. E ou você saiu de casa para dar uma volta no parque, ou você está morrendo por dentro. Caso não tenha “aglomerado”, seu estado de saúde é desesperador. E você vai morrer.

A diferença é que admitimos que é impossível seguir as regras ditatoriais anti-peste chinesa, e admitir a verdade é proibido desde que o Brasil virou uma ditadura brutal sem direito de ir e vir (!), liberdade de opinião, expressão, reunião (!!!) e sem poder falar uma verdade óbvia sem ser acusado de “incentivar aglomerações” e ser chamado de “genocida” por gente cujas aglomerações têm hóspedes que chegam de helicóptero.

É exatamente isso: nós fazemos o que todos estão fazendo, mas temos essa coragem hercúlea de dizer que a neve é branca e a grama é verde. Enquanto outros fazem o mesmo, seja Felipe Neto no seu “futebol passando álcool em tudo” (bitch, please), seja Luciano Huck e Angélica não recusando uma aglomeraçãozinha em sua mansão, seja uma médica BBB (sic) que ganhou dinheiro público de São Paulo para fazer campanha para as pessoas ficarem em casa, e foi para a ilha privada de Bruna Marquezine.

Não queira imaginar em quantas pessoas o jornalista que você vê na TV berrando contra “aglomerantes” encosta e chega perto sem máscara assim que sai do estúdio. Melhor nem vigiar sua casa.

Nós não temos ilha privada. Foda essa vida de merda. Vai ter de ser na sorveteria do bairro mesmo. Vai ter de ser indo pruma praia de pobre como a Praia Grande. Não temos a grana do Doria pra largar o estado de São Paulo todo fodido e ir curtir a vida fazendo compras em Miami sem máscara, enquanto Bia Doria diz que quem perdeu o emprego são “dissimulados”.

Nós não dissimulamos que as portas já abriram. E que vamos vencer a ditadura.


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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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