Nossas autoridades têm a fraqueza da alma que justifica qualquer maldade
Proibir missas, bater em senhoras indefesas que tomam sol e pedir a prisão de jornalistas são prazeres de quem fechou não só cidades e estados, mas a própria alma. Sem ela, só se obedece aos instintos mais tacanhos
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Já rodei uns bons anos por essa vida e, com alguma experiência, posso afirmar que no mundo atual o tipo mais perigoso é aquele que enxerga a si mesmo como um homem elevado. Aquele que sente que sua visão se destaca das demais.
Numa espécie de auto indulgência rousseauniana, o tipo elevado acha que o mundo inteiro se corrompeu conservando ele apenas a bondade inata. É uma doença da alma. Alma, deixo claro, é a instância que equilibra a vida do corpo e a do espírito.
Essa doença decorre de uma alma que não passou da maneira correta pela adolescência. É comum no adolescente, devido às mudanças radicais que ocorrem em sua estrutura física e psicológica, que sua percepção viva numa confusão dos diabos. Daí que ele se sinta isolado do mundo, vítima da incompreensão da família, dos amigos, professores…
Dentro da normalidade, é um processo de maturação, lapidação da alma. O sofrimento via sentimento de inadequação é uma constante. No Brasil, raros são os casos de quem passe por essa lapidação de um modo seguro. Somos pouco civilizados para entender os processos de desenvolvimento da alma, aliás, desprezamos por completo a alma.
Simplificando, sem a devida atenção ao desenvolvimento da alma, fecha-se o acesso ao espírito, que é nossa presença no divino. A alma liga o divino ao natural, dando-lhe as medidas da existência. Por isso Sócrates diz, conhece-te a ti mesmo. A chave essencial da filosofia é um apontamento na direção do que há de único em cada indivíduo.
Não vou entrar aqui nos processos disciplinares para se chegar ao conhecimento, até porque, eu mesmo não os possuo. O que quero é intuir sobre uma fraqueza que pode se transformar em doença.
O fechamento do acesso ao espírito faz com que o corpo construa uma autodefesa psíquica e o indivíduo passe a agir buscando apenas a satisfação corpórea por meio das sensações de prazer que espera obter.
Acontece que o ser humano é infinitamente maior do que ele mesmo imagina e o aperfeiçoamento da alma, que surge do choque com o mundo, pode ser adquirido de diversas formas. Deus sempre encontra uma forma de penetrar no ser.
“Invade-me a inquietação de saber-me estranho a mim e entendo a máxima de Agostinho> Há em nós algo mais profundo do que nós mesmos”, diz, no Diário Filosófico, Constantin Noica.
Aqueles que, pela má condução de seu desenvolvimento – que pode ocorrer por circunstâncias externas, como ocorre aqui -, interrompem o curso de refinamento da consciência, podem chegar a uma deformidade específica da percepção – que é o resultado dos processos psíquicos de autodefesa. A alma fecha-se ao espírito e passa a dedicar-se unicamente ao prazer físico.
As circunstâncias externas são dadas pela cultura vigente. No nosso caso, a cultura midiática. Tudo em nossa mídia conduz à ruína e ao sentimentalismo à flor da pele. A pouca inteligência convertida em mau-caratismo dos formadores de opinião criou o caldo perfeito para uma sociedade que faz de si mesma a medida de todas as coisas.
É o transtorno do prisma luminoso: o indivíduo sente que, mesmo sem saber porra nenhuma, ilumina todas as sutilezas da vida.
Em geral, indivíduos acometidos desse transtorno buscam profissões que os deixem em evidência: a arte, a mídia e a política do dia a dia são o refúgio de gente que se acostumou a supervalorizar a própria opinião.
O que não quer dizer que grandes personalidades, gente muito bem alinhada e refinada, não tenha se dedicado a essas ocupações. Mas em nenhum deles se verá aquele isentismo radical que dá ao indivíduo a sensação de que paira acima das trivialidades do mundo. Sua motivação é a verdade, não a glória.
“Se é preciso gloriar-se, de minha fraqueza é que me gloriarei.”
Paulo, 2 Coríntios 11,30
A personalidade trabalhada, que refinou a alma até ligá-la ao espírito, conhece a fundo a sua consciência; conhece suas fraquezas e se realiza apoiando-se nelas.
Quem se desprendeu da sua consciência por não averiguá-la crê dominar todas as minúcias do mundo em presença e, sem possuir nenhum grande talento, se desloca do senso comum, imaginando com isso que vê o mundo de uma perspectiva toda especial.
É o crítico que, mesmo sem dominar o idioma, sente-se autorizado a passar pito em Camões, por exemplo. É aquele que acha que qualquer adversário merece ser metido numa torre com uma máscara de ferro. Por sua óbvia bondade, está autorizado a cometer qualquer maldade.
Ele crê que a liberdade só vale no seu caso, pois sua personalidade sabe o que fazer com ela. Enquanto se sente autorizado a produzir as maiores asneiras, nega ao próximo a mesma moeda.
Cioran diz que” há uma vulgaridade que nos faz admitir qualquer coisa deste mundo, mas que não é bastante poderosa para nos fazer admitir o mundo mesmo”.
Esse parece ser também o caso da liberdade. Admitimos tudo o que lucramos com a liberdade, mas não a liberdade mesma. Porque a liberdade, por não ser um valor absoluto, amplia os conflitos.
Somos livres, mas não nos é permitido tudo. Daí o poder da frase de Ivan Karamazov, “se Deus não existe, tudo é permitido”. Ariano Suassuna disse que descobriu, “na mesma hora, que as normas morais ou tinham um fundamento divino, absoluto, ou não tinham qualquer validade, porque ficariam dependendo das opiniões e paixões de cada um”.
A dependência das opiniões e paixões de cada um é a síntese do mundo de hoje, em que um representante de uma corte supostamente suprema, criada para proteger a constituição, passa impunemente por cima dela.
Somos reféns de homicidas apaixonados pela própria bondade. No mundo dos adolescentes tardios, o crime é a única moral.
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