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O real problema da USP

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USP movimento negro

Nos últimos meses, a maior Universidade do país, a USP, Universidade de São Paulo, vem gerando notícia atrás de notícia, geralmente comentadas nas redes e acobertadas pela grande imprensa. Não se trata, infelizmente, de referências a suas conquistas no ramo da educação e pesquisa, e sim da bizarrice do que acontece dentro de seus muros.

Estranhamente, tais fatos não estão sendo discutidos dentro da USP, já que o maior tabu do mundo do “pensamento livre”, aparentemente, é falar justamente do que está odorando diante de seus narizes. É uma realidade que deveria ser discutida por todos os seus alunos, sem medo de rótulos e categorização maluco-beleza.

Uma intromissão do Movimento Negro já havia se gerado buzz há alguns meses quando uma aula de Economia fora interrompida por membros de um destes coletivos – uma realidade familiar a toda a USP.

movimento negro uspCriticando a diferença entre a quantidade de alunos negros em contraposição a brancos na Universidade, os membros do movimento foram solicitados pela professora a permitir que todos os alunos voltassem a ter aula de Economia, tendo como resposta “É que a gente precisa mesmo falar, já é poucos (sic) os espaços em que a gente fala”, gerando uma discussão de mais de 10 minutos na sala. Sob berros contra “esta Universidade BRANCA”, fala-se que se tentou “dialogar”, chama-se a professora de racista (crime inafiançável e imprescritível), manda-se toda a sala calar a boca e vocifera-se sob slogans como “toda hora é hora de discutir racismo”, “você não é igual a mim”, “pede para a polícia considerar todo mundo humano, pede para eles pararem de matar a gente, porque a gente vive uma guerra, vocês vivem de boa” , “radical é o sistema, parça”, “não faz essa cara de otário pra mim não, mano” ou, o non plus ultra da produção intelectual uspiana, “cala a sua boca, mano, aprende o seu lugar de fala: quando um oprimido fala, o opressor cala a boca”.

Já nos últimos dias, nova intromissão resolveu “imitar o sistema” e se tornou mais radical, parça: uma jovem negra invadiu também uma sala e discursou longamente sem que alguém esboçasse reação. Sua prédica começa pelo nível “É isso, caralho, é sempre assim: a sua família roubou absolutamente tudo da minha para construir tudo o que você tem” (a velha crença no jogo de soma zero), passa por “quem pagou, e quem roubou? Meritocracia é fácil pá caralho, né, pra quem já nasce em cima da porra do pódio”, determina que “quando cada uma que vocês virem uma cara preta, é pra sentir medo”, ameaça “cada um de vocês, caladinhos do jeito que vocês tão, compactuando com essa porra desse sistema racista de merda”, malsina que “vocês são uns fascistinhas de merda, e vão cair um por um”, e termina considerando que “cada um de vocês nos deve até a alma”.

Tudo isto, bem filmado e indo parar no Facebook (e completamente ignorado por jornais tão preocupados com estranhos ataques racistas a Taís Araújo ou ao protagonista do novo Star Wars), serviu para mostrar para o Brasil o que é ser um aluno da USP todo santo dia, sobretudo de Humanidades.

Antes mesmo de aquilatar que a USP tem sérios problemas com o vitimismo, o marxismo transformado em luta de cor de pele, o pensamento único de esquerda reinante e alguma mínima noção de fronteira, talvez seja o caso de perceber que há coisas anteriores a estas que geram esta situação.

A USP, como a maioria das Universidades públicas do país, fica afastadíssima do restante da cidade, criando até a sua própria “Cidade” Universitária (tem até prefeitura). O que acontece intra muros parece ser cada vez mais desconectado da realidade da linha de ônibus 675K-10 Term. Jd. Ângela (realidade esta que a última moça negra parece desconhecer, em suas férias pelas praias do Uruguai e do Chile). É como um Muro de Berlim que protege a USP de dialogar com quem paga suas contas.

A Cidade Universitária, seus enormes e stalinistas espaços vazios entre prédios com comunicação nula de um para outro, é um ambiente opressor justamente ao estudo, ainda mais o estudo da realidade (ficando sempre com o imaginário coletivo dos cursos de extrema-Humanas).

Basta olhar para qualquer prédio da USP, para uma parcela mais ruidosa de seus alunos nos ônibus do campus, e pensa-se mais em Marginal Pinheiros, em minhocão, em sofrimento de shopping center do que em Plotino, Leo Strauss, William Shakespeare ou Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen.  É a velha sina do realismo socialista: se os impressionistas pintam o que vêem e os expressionistas o que sentem, os realistas de ciências sociais pintam o que mandam que eles pintem.

Seus prédios são lajotinhas, tudo quadrado e modernista, algo tão doloroso ao olhar e êmulo do livre pensar como um Memorial da América Latina de veias abertas de concreto armado na Barra Funda. É aquela velha arquitetura soviética, tão grotescamente viciada em “igualdade” de retângulos cinzas, que faz qualquer um pensar mais em achar Arnaldo Antunes um gênio do que entender a versificação de um pentâmetro iâmbico.

cambridge universityEste ambiente faz com que seja natural que estas figuras do Movimento Negro, na verdade, se sintam em casaao contrário de quem está interessado em um conhecimento sólido, eterno, rígido e rigoroso, independente de modinhas. Tente imaginar tais intromissões nos prédios de Cambridge ou da Humboldt-Universität e entenderá o tamanho do repuxo da realidade concreta.

E esta é só a casca, o exterior do puxadinho. O que a USP faz com o pensamento é construir uma prisão e uma cerca elétrica impedindo o contato com a existência milhões de vezes mais causticante.

A Universidade perdeu o seu valor medieval de conhecimentos, afinal, universais, passando a ignorar a discussão para arrogar-se já detentora de conclusões. Se você quer ser um “uspiano” padrão de Humanidades, basta ler a coluna de Vladimir Safatle na Folha ou a última revista Cult e voilà, quase tudo já está dito a você e nada mais lhe será perguntado.

Discutir o erro do passado sob auspícios da tradição sobrevivente, o presente à luz do Eterno, o futuro através da lente do ceticismo e da falibilidade das boas intenções humanas? Muito trabalho, basta falar algo contraditório com palavras como “dialética” ou expressões aversas à realidade, como diagnosticar a “sub-representacão de conflitos próprias à ‘velha classe pobre’” (sic), para estar de acordo com a USP.

Porque a USP se tornou uma faculdade com que se concorda, como se fosse um ser vivo, um todo orgânico e homogêneo: a USP é especialista não em discussão entre aspirantes a sábios, mas na formação de consensos, que serão então tratados como verdades inquestionáveis e tabus sagrados pelos falantes do restante do país.

Ben Shapiro afirma que a Universidade se tornou não apenas o lugar onde não se discute nada, mas onde alguma opinião diversa sequer é tratada como existente, preferindo-se fingir que ela nunca fora aventada. E olha que ele fala de Harvard, e não da USP.

O mais fenomenal do que acontece nas intromissões do Movimento Negro da USP, portanto, não é seu autoritarismo, sua agressividade pura, seu hedonismo, sua busca pelo caminho mais fácil (o velho “atalho para a casa da Vovó”), sua estética lumpesina, sua inversão de significâncias, sua inconseqüência onipotente, sabendo que qualquer “porém” será tratado pela força da palavra “racismo” esvaziada de sentido.

O que é tão notável é justamente que este movimento acredita estar sendo chocante, com o discurso mais clichê e repetido desta geração – não me lembro de um único professor de História ou Geografia de toda a minha formação que não dissesse simplesmente o mesmo que tais criaturas estão deblaterando, acreditando-se estarem sendo surpreendentes, únicas, excelsas, polêmicas, alterosas. Quiçá até mesmo, com uma denominação paradoxal, politicamente incorretas.

USP ser branco é

Alguém aí nunca tinha ouvido o discurso vitimista de que os negros são pobres porque os brancos tomaram toda a sua riqueza anterior? De que os brancos, inclusive os italianos e alemães que vieram substituir negros nas plantações mais de meio século antes do fim da escravidão, devem tudo o que tem aos negros? Este discurso que sempre ignora judeus e japoneses, as etnias da vitória sobre o sofrimento e da invenção e da disciplina, por alguma curiosa amnésia seletiva? Difícil encontrar ser humano neste país que nunca tenha ouvido tais platitudes mentirosas.

Mas os “interventores” crêem que estão deixando a platéia cho-ca-da, mortalmente horrorizada e amedrontada, ao repetir o que esta platéia já ouviu a vida inteira (talvez a única coisa que ouviu sobre cor de pele no Brasil, já que Gilberto Freyre não cai no vestibular). Não enxergam o tédio e a educada faina de bocejar de boca fechada que provocam com sua intempestividade.

Envidando seus maiores esforços para não ser um indivíduo, cada ser humano aboletando-se nestes coletivos subtrai-se de sua individualidade, de tudo aquilo que tem de próprio e único, de toda responsabilidade e tudo o que tem de amável e admirável, para reduzir-se a um discurso, um esquematismo social, uma cor de pele, uma vontade sexual, um estilinho hippie e sua incapacidade invejosa de produzir riqueza como um eficiente pasteleiro.

Não são mais indivíduos declamando um discurso de estro próprio, concatenando idéias, admoestando a la Vieira: conseguem abortar suas existências individuais a permitir que um discurso fale por si, através deles, como se eles não existissem. E consideram atingir a crème de la crème de suas vidas em tal apoucamento.

Esse discurso é o que a USP produz e, no sentido mais carniceiramente fordista, daquele materialismo capitalista rés-do-chão, reproduz com seu modo de agir. Se pouca serventia há para bacharéis em Letras ou Filosofia – que dirá antropólogos ou sociólogos, formados às mancheias todo ano sem um quadro como “especialistas” na Globo News para chamar de seu – basta criar todo o sistema universitário para que eles acabem dando aula para os próximos a ocupar lugar no sistema, and so on and on and on.

the wall childrenÉ fácil criar o moto perpetuo do discurso irreal, e ainda mais fácil divorciá-lo de papel timbrado da realidade circundante da Cidade Universitária, podendo afirmar qualquer coisa sobre coletivos genéricos, como “a sociedade” ou “o sistema”, evitando ao máximo cruzar ou conviver com qualquer um deles. Estes indivíduos então não apenas “podem” ser iguais e integralmente substituíveis pelos próximos, mas até mesmo desejam isto, considerando tal igualdade, tal consenso, tal achatamento, tal planificação e mesmificação o maior sinônimo de “justiça” já inventado pela humanidade. All in all you’re just another brick in the wall.

Universidades vivem de polêmicas, não de aceitação cega. Mas polêmicas na USP, fora afirmar que negros são oprimidos? Nenhuma chance. O último livro de Michel Houellebecq e sua visão controversa da islamização da França foi comentado, refutado ou argumentado por quantos intelectuais uspianos nos cadernos de literatura e cultura no Brasil? Escritores polêmicos como Jonathan Franzen ou Chuck Palahniuk criam obras que são discutidas onde quer que sejam lidas – exceto na USP e nas Universidades públicas, onde sua existência é ignorada.

Teóricos “sociais” do porte de Theodore Dalrymple ou Roger Scruton lançam obras e geram discussões na USP, ou simplesmente seus professores escondem-se na repetição ad nauseam do pós-estruturalismo e do misto de marxismo e psicanálise da análise do discurso para fingir que a história acabou em 1970?

E mesmo intelectuais brasileiros sacudindo o público leitor do país, como Bruno Garschagen, Rodrigo Gurgel, Martim Vasques da Cunha ou Olavo de Carvalho, são ao menos refutados pela douta Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, ou finge-se que se vive em outro país dentro de seus muros, apartado daquele mundo em que as pessoas lêem livros fora dela?

A Universidade perde seu caráter de discussão entre grandes para se tornar concordância entre quem grita mais alto. E não mantém seu brilho e a força de seu nome (“um intelectual da USP!”) graças ao poder de argumentação, de lograr criar uma base teórica sólida num mar de convolutas teorias terçando armas. Mantém sua tradição simplesmente pelo consenso, pela capacidade de concordar e obedecer, pela asnação da careta boquiaberta diante de “revolucionárias” teorias de 40 ou 50 anos de seus professores. Ser “da USP”, nas Humanidades, significa pouco mais do que obedecer a cartilha do Partido do Pensamento Único no Brasil.

A própria idéia de exigir “cotas” para “tornar a USP preta” atocaia-se nesta premissa: não de que a população paga (eis aí algo chocante!) pela USP porque quer uma Universidade de ponta, independentemente de quem esteja ali estudando. Não querem servir ao padrão seleto de uma Universidade reconhecida – pelo contrário, querem que a Universidade sirva a eles, pois onde já se viu não estudarem lá, quando outros estão estudando? Minada a discussão elevada intra muros, resta apenas ser o primeiro a catar os caquinhos de sua reputação, apenas para afirmar que conseguiu ser um uspiano, sem precisar explicar qual o mérito próprio para tal.

Uma rápida consulta pela população que a financia chocaria tais “defensores de minorias”, perguntando se preferem que a USP seja uma Universidade de excelência ou que se pague por ela para haver mais alunos negros, mulheres, gays, trans, gordos ou de qualquer outro grupo vitimista de ocasião podendo-se arrogarem-se “uspianos”. Inclusive entre seus financiadores pobres e negros.

Isto para não comentar a paralaxe cognitiva, o descompasso entre enunciação e experiência, de quem afirma que não consegue entrar na Universidade porque branco faz cursinho, e ao mesmo tempo “dá aula para gente [branca] como você”.

Neste sistema de reprodução de faces e discursos idênticos, o grosso de quem é atraído para as Humanidades foca-se em oradores ásperos e militantes da causa inquestionável da vez. Pessoas sem a capacidade técnica de uma manicure ou borracheiro arrogam-se importantes, sobertas, excepcionais, portentosas e alumiadas tão somente por terem uma verborréia “social” para repetirem, achando então que cada manicure ou borracheiro lhes deve dinheiro de impostos – e até mais do que a um grande provedor de empregos e riqueza aos pobres – meramente pelas intenções igualitárias de seus arrazoados.

Sejam negros, mulheres, gays ou a minoria que for (excetuando-se as minorias invitimizáveis, como judeus ou japoneses), são, na maior parte dos casos, os “melhores” entre sua própria minoria, com seu discurso ultra-individualista quando se trata de defender seu próprio mérito (“eu estudei que só a peste para estar aqui!”) – mas não passam, ao fim e ao cabo, dos filhos ricos que não pagam as contas e não sabem o preço do tomate, mas descarregam um mol de opiniões coincidentemente idênticas às dos professores de seus professores na década de 60, sobre a economia, a política e a desigualdade do país.

É um ambiente completamente avesso tanto ao distanciamento da realidade (com sua estética chocante e sua agressividade verbal tão crua, tão comezinha, tão Radial Leste) quanto ao aprofundamento na realidade, haja vista que apenas falam de um esquematismo social reduzível a uma injusta desigualdade de cores de pele, orientações sexuais ou mulheres em cursos de Engenharia. O exato oposto do romantisches Lebensgefühl, da sensação de vida e pertencimento ao mundo que marca a maturidade do pensamento e da existência.

Neste ambiente de recalque, de frustrações como moeda de troca, de dissolução de sujeitos em uma massa coletiva homogênea, de hipersexualização em que ninguém se pega, de preocupações comezinhas com a insatisfação de seus desejos e suas invejas, cegos ao Boko Haram ou à invasão da Criméia, o máximo de produção intelectual freqüente da USP são blogueiros e tuiteiros usando sua muitas vezes fictícia condição de vítimas como angariadores de seguidores pequeno-burgueses, igualmente livre-comerciantes da auto-insatisfação.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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