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O impeachment não vai “acabar com nossa democracia”, sosseguem a periquita

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silvio santos marx

A regra “Não acredite em tudo que postam na internet” precisa de um corolário urgente: “Quase ninguém que posta algo na internet acredita no que está postando”.

As pessoas não lêem livros, refletem, cotejam fontes, trocam informações díspares, fazem sínteses de antíteses, assistem idéias terçando armas por um bom tempo até escolher o que defender e, aí sim, postar na internet. Bem o contrário: as pessoas acreditam em alguma ladainha que alguém enfiou na cabeça delas e, como internet não tem programação obrigatória como a Globo, vão buscar apenas as “fontes” com as quais já concordam e lhes prestam obediência imediata a tudo.

Quando alguém posta uma notícia, artigo, análise ou post de blog numa rede social, não está de fato acreditando naquilo: no mais das vezes, está com suas crenças em frangalhos, apenas agarrando-se desesperadamente a uma bóia de salvação, tentando ver se algum último recurso pode ser usado como arma, senão para defender as vergonhosas certezas que teve no passado, ao menos para atacar também seus inimigos e justificar seus erros.

Não é de fato uma , um compromisso existencial, algo a dar sentido à vida. É apenas uma aposta, um tiro no escuro, uma tentativa de gritar “Truco!” mais alto.

Nas semanas em que ser petista se torna algo bem mais vergonhoso do que ter sido malufista (malufistas, praticamente em unanimidade, admitem o erro e terem sido enganados, ao invés de se afundar numa ideologia para auto-justificação), os espalhafatos e as análises alesmaiadas são a arma de salvação da crença em estado terminal.

A última moda é afirmar que se Dilma Rousseff, a presidente, sofrer o impeachment, teremos “acabado com a nossa democracia”, tão dificilmente “conquistada”.

massacre-da-praca-da-paz-celestial memeEstas pessoas também adotaram o bordão “vá estudar História!” só conhecendo a história que o MEC nos obriga a decorar para o Vestibular (os maiores historiadores do mundo de hoje, como David Pryce-Jones, Anne Applebaum, Orlando Figes, Simon Sebag Montefiore ou Paul Johnson são alienígenas completos para tal mentalidade). Ainda acreditam que a democracia precisou ser “conquistada” de “ditadores” por pessoas que “lutaram” por ela – e não que a palavra “democracia” só virou mote já nos estertores da ditadura, quando falar em “ditadura do proletariado” já tinha se mostrado um falhanço completo perante a população.

Até hoje, apenas conseguem pensar em eventos históricos com reflexos mundiais (da invasão da Baía dos Porcos a Chernobyl) pela clave da comparação com a ditadura militar.

Ok, podem acreditar que a atuação de Dilma Rousseff na violentíssima VAR-Palmares, que cometeu inúmeros assassinatos, praticou o assalto ao cofre da amante do governador Adhemar de Barros (o famoso “cofre do Dr. Rui”), diversos assaltos a bancos etc etc etc era “luta por democracia” (quando qualquer lógica mostra que a ditadura só existiu por causa disso, e não o contrário). Mas… hoje, 2016, seu impeachment graças a pedaladas que envolvem centenas de bilhões de reais que poderiam virar hospitais, escolas e as Bolsas-Famílias tão queridas, o que têm a ver com o fim da democracia?

Podem inventar que isto é um “golpe”, como se crime de responsabilidade sem punição não fosse, justamente, um golpe. Podem acreditar no Advogado-Geral da União afirmando que não há crime nenhum, quando só o fato de um Advogado da União advogar pelo PT já configura, para dizer o mínimo, uma postura golpista.

Podem tentar assegurar que o impeachment é do interesse pessoal de Eduardo Cunha e Michel Temer, os dois principais articulares do governo, quando o impeachment foi um processo técnico coadunado com o interesse de 66% da sociedade, e Cunha se arvorava engavetador de mais de 30 pedidos de impeachment.

Podem tentar dizer que o Brasil com o impeachment vai… Bom, não dizem nada, apenas gritam “Golpe!” e “democraticamente eleita!”, como se Collor não o tivesse sido e o Brasil não tivesse melhorado muito depois dele (mesmo que o principal articulador do impeachment então tivesse sido justamente o PT, como pediu impeachment de todos os presidentes “democraticamente eleitos”).

Mas… o que isso tem a ver com “democracia”? Quer dizer que se alguém ganha eleição, pode tudo? Meu Maluf é melhor do que o seu? Que justamente quem cuida do poder deve estar acima da lei, e não a obedecendo com mais esmero do que nós, pobres mortais? Que apear do poder quem dele abusa é abuso? Que se alguém ganha eleição com contas reprovadas por unanimidade no TCU, basta repetir que essa pessoa “ganhou a eleição” e pronto, vitória roubada é vitória e “respeitem as urnas”?

Ora, Dilma está sendo acusada, justamente, de crimes que atentam contra a democracia. Todos eles. Inclusive as pedaladas – nosso dinheiro sendo usado para fingir que o Estado de Bem-Estar Social petista está de vento em popa e ganhar eleições com mentiras, quando estava jogando o país nesta crise econômica desastrosa. O que qualquer liberal sabe – por isso recusa o “dinheiro grátis” vindo do Estado: por saber que ele é fictício e sempre é cobrado com juros astronômicos depois.

abaixo a ditaduraPor acaso isso significa que retirá-la do poder que tanto abusa significa que não teremos mais liberdade de expressão, de livre-associação, de imprensa? Que seremos torturados no DOI-CODI apenas por acreeditarmos nos 6 clichês a que se resumiu o discurso esquerdista? Que a Rede Globo vai nos fazer experimentos a la Laranja Mecânica, que tanques de guerra estarão nas ruas, que seremos revistados pela polícia fascista somente por fazermos faculdade de Ciências Sociais, que gangues de Bolsonazis espancarão inocentes nas ruas caso andem de camiseta vermelha? Que Sérgio Moro ele próprio vai mandar prender todo mundo que não seja tucano, enquanto Eduardo Cunha e Jair Bolsonaro estarão comendo o coração de bebêzinhos depois de arrancá-los de seus peitos ainda vivos. Aliás, troque “bebês” por “gays”, já que bebê lembra aborto, e quem defende aborto é justamente o PT.

Sério, é abusar demais da faculdade humana de acreditar em fanfic de esquerda. Inventem pelo menos uma narrativa plausível, estudem um pouquinho de verossimilhança, saiam do quarto e dêem uma volta no quarteirão percebendo finalmente que a realidade entre sua casa e a padaria é a mesma que você tenta descrever em tintas infernais ao discutir política no Facebook e no DCE e note o abismo que separa uma coisa de outra.

Menas, gente.

Sei que o argumento para defender a permanência do PT no governo além de “MAS EU GOSTO DO PT” está meio difícil. Tem de apelar para eufemismos, como chamar os rombos bilionários de “erros”, a compra de voto e poder de “negociata”, as reiteradas compras de silêncio de delatores de “traição” (seguido por um subentendido “mas Dilma e Lula não sabiam de nada”, já que ninguém da imprensa nem do Judiciário vai questionar essa obviedade). Mas é preciso fazer melhor do que esse discurso alarmista de achar que ou é PT mandando e desmandando, inclusive comprando eleições para depois se abrigar na cantilena do “democraticamente eleito”, ou é tanque de guerra, nazismo, Estado Islâmico, genocídio, eduardocunhismo.

Pode funcionar para adolescente deslumbrado que faz Letras e acha que Dilma foi eleita por 900 pessoas, mas pra quem vive no planeta Vida Real, é só colóquio flácido acalentador de bovinos.

Vocês que preferem qualquer rombo bilionário apenas para manter tudo no Estado, morrendo de medo de privatizações, poderiam rever o quanto privatizaram suas próprias opiniões.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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