Incriminação do “discurso de ódio” e os perigos do Direito Penal autoritário
Breves comentários sobre os riscos do uso precípuo do Direito Penal como instrumento moralizador/pedagógico.
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Em termos práticos, é inegável que o direito penal exerce um papel de natureza ética e moral, uma vez que, ao cumprir sua missão primária de “derradeira trincheira no combate de comportamentos humanos indesejados” (Paulo José da Costa Júnior), acaba desempenhando ainda uma função lateral “criadora de costumes”[1]. É dizer: ao enunciar taxativamente os atos desvaliosos, o direito penal acabaria apontando implicitamente os atos valiosos e moralmente incentiváveis, pois todo e qualquer delito gera, além da lesão ou exposição a perigo de um bem juridicamente protegido, também um rompimento com a ordem ético-social.
A dúvida está na legitimidade de uma intervenção penal calcada tão somente (ou ao menos primordialmente) nessa função secundária moralizadora e pedagógica.
Naturalmente, trata-se de uma tarefa muito mais ambiciosa que a originalmente atribuída ao direito penal, de coibir agressões ou ameaças de agressões aos bens e direitos mais caros à comunidade (vida, liberdade, patrimônio e assim por diante), na medida em que o direito penal deixa de se ocupar exclusivamente dos atos exteriorizados pelo autor do crime, passando a se debruçar sobre a própria consciência do cidadão.
Surgem justamente nessa linha as reivindicações progressistas quanto à incriminação do “hate speech”, que encontra fundamento muito mais na violação de uma consciência coletiva de tutela a valores universais (como igualdade e fraternidade) que na existência de efetiva agressão a direitos concretos e individualmente aferíveis.
Mas não é nova a tendência à abstrativização dos comportamentos passíveis de punição criminal. Em verdade, constitui traço comum aos regimes autoritários de toda sorte a previsão de crimes de consciência e delitos de atentado, isto é, tipos penais calcados na intenção interior do agente, dispensando a prática de qualquer ato material exteriorizador de sua conduta. Não faltam exemplos históricos desse tipo de antecipação exagerada da intervenção penal: i) o regime nacional-socialista alemão tentou substituir o direito penal da lesão concreta por um direito penal do perigo abstrato (Gefährdungsstrafrecht) em que a concepção de delito se confundia com a infringência ao espírito comunitário propalado pelo Reich; ii) o regime franquista punia severamente qualquer atentado “contra os interesses da Nação”, mormente contra a segurança do Estado.
Algo similar é o que se observará caso a recente denúncia oferecida em face do Deputado Jair Bolsonaro pelos crimes de apologia e injúria realmente desague em sua condenação: sancionar-se-ia o agente não pelo que ele fez (uma vez que não há como extrair objetivamente qualquer conteúdo apologético da frase “eu não a estupraria porque você não merece”), mas pelo que ele é e pensa, substituindo assim o “direito penal do fato” pelo antigo e indesejável “direito penal do autor”. Não descabe dizer que a mencionada frase do parlamentar é de fato abjeta e moralmente reprovável, mas as decisões judiciais estão adstritas a critérios legais na apreciação dos casos concretos submetidos a seu crivo, não sendo dado a qualquer magistrado ou Tribunal emitir julgamentos morais e políticos.
Em suma, caminhamos para a volta de um direito penal expansionista e simbólico que, sob pretextos muito nobres como a eliminação da “intolerância”, passa a se preocupar primariamente com o caráter representativo que se extrai das punições e não hesita em assumir a audaciosa pretensão de corrigir o modo de pensar dos indivíduos, violando assim um preceito básico que acompanha a cultura jurídica desde os tempos romanos:“cogitationis poenam nemo patitur” (ninguém pode ser punido por seus pensamentos). Uma vez conferido a essas almas tão bem intencionadas o poder de discernir as opiniões corretas das incorretas, surge a já conhecida dúvida anunciada por Agostinho Ramalho Marques Neto — “quem nos protegerá da bondade dos bons?”.
Não por outra razão, a doutrina penalista contemporânea preconiza que tal tarefa pedagógica não pode ser atribuída à justiça criminal, deslegitimando as intervenções penais fundadas exclusivamente na ética social, pois “ao direito penal incumbe exclusivamente a proteção de bens jurídicos, não a moralização dos seus cidadãos, nem a melhora ética da sociedade, que é tarefa de outras instâncias”.[2]
Não se discorda que a melhora ética dos cidadãos seja algo necessário e desejável. Contudo, em uma sociedade democrática e pluralista, alcançar a esfera da convicção íntima do indivíduo para alterar o padrão dos valores que o animam não pode ser papel do direito penal, senão apenas de entidades informais como a família, a escola e a religião. E ainda que tal objetivo fosse realizável através da intervenção penal (e claramente não é), nada garante que os ocupantes do poder realmente se valessem da prerrogativa de ditar mais livremente o conteúdo das condutas criminosas para promover o bem comum. Ao contrário: nossa história adverte que mais prudente seria desconfiar que a usassem para salvaguardar seus próprios interesses e os do partido dominante, motivo pelo qual manter o direito penal adstrito à sua função essencial, de repressão da violência concreta, é sempre a decisão mais saudável à manutenção das liberdades individuais e da própria democracia.
[1] SILVA SANCHEZ, Jesús-Maria. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo, Barcelona: Bosch,1992, p. 300
[2] MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito Penal: Fundamentos e Limites do Direito Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 204.
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