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No meio do caminho tinha uma Zélia

Zélia Duncan confunde exercício de mobral com poesia e passa vergonha na Internet

Efeito Paulo Freire encarnou-se em Zélia que, usando a forma poética sem preencher o conteúdo com poesia, acha que estado deve financiar quem nunca fez arte

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Dizem por aí que a Internet deu voz a uma míriade de boçais que, sem ela, estariam levando uma vida simples, emitindo suas opiniões de titica apenas para um círculo fechado de pessoas. Talvez só a dona Eulália, em tempos passados, tinha ouvidos para os resmungos impúberes de João Vitor, seu filho adolescente. Otelo Botuca talvez não tivesse com quem compartilhar as alegrias de assistir ao Vigilante Rodoviário todas às terças, sabendo que na repartição ninguém se interessava pelo assunto. Cada época guarda suas sinas.

A internet encurtou as distâncias, facilitou as conversas, mas trouxe com ela aquele mala que só importunava meia dúzia de infelizes que viviam na mesma vila em Vanuatu. Mas isso é apenas um efeito colateral da maior mudança nas relações humanas que se tem notícia na história. Só comparável ao tiro dado no arquiduque Francisco Ferdinando ou, mais traumático ainda, a adição do VAR nos jogos de futebol. Que dizer, deu tilt geral.

Mas um dos efeitos mais benéficos do advento da Internet foi o sistemático desmascaramento de personalidades tagarelas que usufruíam de um status jamais condizente com suas realizações de fato.

A Internet sacudiu a rede onde milhares de supostos artistas refestelavam suas ancas preguiçosas, contabilizando o lucro de suas posições ideológicas anti lucro.

Zélia Duncan, sub celebridade do mundo do ruído nacional, postou um vídeo em que tenta esboçar, em sua recente conversão ao alfabeto, algo próximo do que, no mundo adulto, chamamos de versos.

Zélia, sensata como um tupperware vazio, pergunta se não precisamos de artistas e pede que lhe devolvamos os “momentos alegres”. A autora de Gringo Guaraná (wtf!) tem toda razão. Sua arte está muito acima da nossa modesta compreensão.

Zelia é quase um Homero ou uma Emily Dickinson. Autora desta verdadeira ode ao dermatologista ou ao cabeleireiro (toda alta poesia compreende muitos significados), Zélia quer que lhe devolvamos seus versos:

Loiro, sarará, preto, alisadinho

Branco azedo arde queimadinho

Camarão, Sundown, legal

Gringo guaraná, ruivo, loiro, brown

Ruivo, loiro, brown

biro-biro

Se depender só de mim, Zélia, tô lhe devolvendo tudo pra não dar encrenca.

Zélia segue, enfurecida contra os neandertais que odeiam sua arte:

Arranca o rádio do seu carro (bilhões de risos)

destrói a caixa de som.

Lendo isso, como não lembrar de Derek Walcott, Auden, Yeats e Eliot?

Zélia emposta a voz feito uma britadeira com pouca bateria, é um tanto artificial em suas caretas. Parece que está lendo Shakespeare no original, em grego. 

Mora no breu,

esquece o que a arte te deu!

Uau! Isso faria um Eliot se envergonhar de ter escrito algo como: 

“I sat upon the shore

Fishing, with the arid plain behind me

Shall I at least set may lands in order?”

Eliot dialogava com toda a arte, Zélia dialoga com uma batida de maracujá, no máximo.

É arte de quiosque de praia. 

Manuel Bandeira diria o quê diante de tal precisão vocabular:

“finja que não te deu nada (a arte):

nenhuma cor, nenhum som, 

nenhuma flor na sua camisa” (????)

Pede de volta as cores no caminho, mas Zélia só conhece duas, pelo que percebemos. 

Joseph Brodsky, num ensaio magnífico, diz que “a Providência sabe, melhor do que ninguém, que qualquer um que decida seguir um bom escritor acabará retomando as coisas exatamente do ponto onde o grande homem as deixou”. A MPB de Zélia, seguida por uma enormidade de gênios da garatuja verbal, nos legou o sertanejo universitário, o axé e o funk carioca. Algo que muito nos orgulha mesmo.

E Huizinga, também magnífico, diz que “o exame de consciência que se recolhe e sonda a mais profunda intimidade e a dedicação que consagra ao momento a nossa presença incondicional são posturas essenciais para a existência da cultura.” 

Será que Zélia examina sua consciência? É óbvio que não.

Atrevo-me a dizer que depois desta fornada de asneiras qualquer artista de verdade vai defender Bolsonaro até a morte.

Pra quem tiver o sistema digestório saudável, segue o vídeo:

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Assuntos:
Carlos de Freitas

Carlos de Freitas é o pseudônimo de Carlos de Freitas, redator e escritor (embora nunca tenha publicado uma oração coordenada assindética conclusiva). Diretor do núcleo de projetos culturais da Panela Produtora e editor do Senso Incomum. Cutuca as pessoas pelas costas e depois finge que não foi ele. Contraiu malária numa viagem que fez aos Alpes Suiços. Não fuma. Twitter: @CFreitasR

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