Stranger Things e a cultura da problematização
A série do momento na Netflix, Stranger Things, chama atenção pelo sucesso, mas é vítima da nova mania dos textões: a problematização da vida.
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Se você tem acesso às redes sociais, já deve ter percebido que a nova série do momento é Stranger Things. Uma produção original Netflix que estreou dia 15 de julho desse ano, Stranger Things mistura referências que tocam no coração de dois grandes grupos: os que foram adolescentes na década de 80 ou que cresceram nos anos 90, mas assistindo na Sessão Da Tarde os filmes de sucesso dos anos 80.
De Goonies a Poltergeist, de E.T. a Conta Comigo, a inspiração oitentista da série vai até na atriz escolhida para um dos principais papéis adultos da serie: Winona Ryder. A própria fonte usada no título da série evoca sentimentos: é a mesma da falecida revista Dragão Brasil, companheira de todos os nerds dos anos 90 (embora eu tenda, a contragosto, a admitir que isso possa ser apenas uma coincidência).
Que a série é um sucesso, disso não há dúvidas. Mas qual a polêmica disso? A polêmica atual vem da teoria de que a Netflix estaria usando um algoritmo foderoso de processamento e, analisando o comportamento de seus usuários, teria feito uma “série perfeita”.
O mesmo teria sido feito com House of Cards, ainda hoje o principal produto da Netflix, ainda nos primórdios de sua invasão aos lares mundiais. Em 2013, David Carr escreveu uma matéria ao NY Times “acusando” a Netflix de usar “Big Data” (nome chique para indicar análise de grande quantidade de dados) e, assim, perceber que David Fincher e Kevin Spacey, individualmente, tinham muito mais audiência do que os nomes deles poderiam sugerir a um leigo. Além disso, notaram que uma série inglesa sobre política chamada (prepare-se, agora vem o plot twitst) “House of Cards”, e era praticamente desconhecida, mas tinha uma pequena legião fiel de seguidores. Dessa análise preliminar teria sido desenvolvida a versão americana de House of Cards, juntando Fincher, Spacey e House of Cards: uma série “nascida para o sucesso”.
“No negócio de televisão, não existe algo como sucesso garantido. Você pode ter um diretor premiado, uma estrela pagável e um estilo popular e ainda assim tudo é só um rolar de dados.
É mesmo?”
David Carr, “For ‘House of Cards’, Using Big Data to Guarantee its popularity” – NY Times 24/02/2013
A diferença entre House of Cards e Stranger Things seria a amplitude de dados a que a Netflix, hoje uma gigante mundial, tem acesso. Usar os dados dos usuários para produzir conteúdo que os agrade seria uma nova forma de “invasão de privacidade” ou “manipulação”. Conseguiram comparar Stranger Things a Donald Trump. É sério. Eu nem me arrisco a tentar explicar essa linha de raciocínio.
Por mais que o topete setentista de Donald Trump possa evocar a memória afetiva de alguns (espero que não a de muitos), dificilmente alguém sério poderia dizer que uma comparação como essa mereceria uma matéria de jornal. Muito menos em um dos jornais mais lidos do país. Mas, se você está aqui lendo isso, acredito que já faz tempo que você desistiu de acreditar que a mídia tradicional é capaz de produzir conteúdo relevante, a menos que relevante signifique aquele que recebe apoio imediato da galera da nova esquerda engajada.
Enquanto deve haver muita gente feliz com o fato de uma empresa se preocupar em fazer um conteúdo sob medida para seu público, há esse outro pólo de pessoas extremamente “preocupadas” que sua privacidade esteja sendo devassada para produzir uma série nostálgica com elementos dos anos 80. Ou talvez eles apenas queiram angariar mais alguns likes do seu público de sempre.
Talvez seja apenas uma característica minha ser um tanto quanto cético sobre o poder que uma série de clima retrô baseada em dados estatísticos pode ter no futuro da civilização ocidental, mas me parece um grande exagero falar em manipulação (isso só para não dizer logo que é uma merda inacreditável na minha primeira aparição no site).
Um produto de entretenimento feito sob medida para agradar milhões de pessoas, ao invés de render matérias indignadíssimas na mídia tradicional, deveria render um case sério a ser estudado em escolas de negócios. Um case de como fazer produtos personalizados e com baixo custo para o cliente final.
O que deveria ser (para a esquerda e para o resto do mundo), motivo de comemoração, uma vez que a Netflix rompe com a produção tradicional de conteúdo, produzindo seus filmes, documentários e séries fora dos canais tradicionais, torna-se motivo de polêmica. A Netflix deveria ser um exemplo de rompimento com a assim chamada “grande mídia”, sempre tão criticada pela esquerda (não vamos entrar no mérito que, estranhamente a grande mídia geralmente é criticada através da própria grande mídia, o que deveria fazer alguém, em algum lugar do mundo, coçar a cabeça ao perceber que tem algo que não vai bem nessa história).
Em suma, quando uma nova empresa, fugindo dos padrões tradicionais de mídia, que se apoia em um elemento democratizador, a Internet, e consegue oferecer um produto de alta qualidade, personalizado e barato ao usuário final, ao invés de ser elogiada pelo inacreditável trabalho de pesquisa e mais, por fazer um amontoado de dados se tornar um produto final incrível, essa empresa acaba sendo simplesmente condenada pelos grandes veículos e pelos pensadores mais canhotos.
E isso nos revela mais sobre essa tal “mídia engajada’ do que sobre a própria Netflix.
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