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Política

Eduardo Cunha e narrativa desfrangalhada do PT

Tão desejada pelo PT, a cassação de Eduardo Cunha não foi comemorada por petistas. Sem o bode expiatório, como fica a política e o discurso?

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Eduardo Cunha chateado

O mês é outubro de 2014. Menos de 2 anos atrás. As eleições nacionais que selaram a sorte (the doom) de Dilma Rousseff correm soltas. O único tema de qualquer conversa, seja numa maternidade ou num prostíbulo, é a política brasileira. O nome de Eduardo Cunha deve ser conhecido por menos de 1% da população brasileira. Inclusive entre petistas.

O mês é março de 2015. As primeiras manifestações contra Dilma (ainda fortemente contrária “à corrupção) são organizadas. Eduardo Cunha, que se aliou a Dilma em sua eleição e reeleição, ainda é líder do governo na Câmara. Percebendo uma batata quente, dá seus primeiros sinais de desgaste com o PT.

Graças a uma faixa nessas manifestações, que tomavam Eduardo Cunha como uma liderança contrária ao PT de Lula e Dilma quando tinha sido recém-descoberto por 99% da população brasileira, uma narrativa foi infundida e espalhada via redes sociais: quem o conhecia, sabia que Cunha tinha maracutaias mal resolvidas desde que saiu da Telerj, em 1993. Bastava então “jogar Cunha no colo” de quem era anti-PT – embora nem mesmo os analistas que praticaram o espalhafato tivessem muita ou qualquer consciência sobre o cunhismo até pouco antes.

Cartaz Impítiman é meu zovoSem ter como defender uma presidente que já vinha assombrada pelo impeachment desde antes de ser reeleita, sem ter como refutar somas de proporções transcontinentais como o petrolão, as pedaladas fiscais, o autoritarismo explícito dos decretos legislativos, a compra de Pasadena, suas contas de campanha rejeitadas ou sua proximidade com figuras da Lava Jato, da Acrônimo e do misterioso dono do sítio de Atibaia e do triplex do Guarujá, sobrou uma espécie de ad hominem en masse: baforar por todo o país a historieta de que qualquer pessoa que critica Dilma Rousseff é um caudatário de Eduardo Cunha.

Estava criada uma falsa equivalência para a esquerda: se Dilma é ruim, Cunha seria tão ruim quanto, sem nunca contabilizar as cifras para ver se os pratos da balança ficam equânimes ou se parecem o comparativo entre um elefante e uma pena. Quem criticasse Dilma, o PT e a esquerda não tinha moral, a não ser sob ordem expressa de considerar Eduardo Cunha tão ruim quanto ou pior.

E a ordem era realmente sempre expressa, como qualquer seção de comentários da internet o prova: quem não o criticasse não era apenas conivente com a corrupção (portanto, uma pessoa sem “moral” para falar de Dilma, como se pessoas sem “moral” não tivessem direito a voto ou a perceber algo errado). Ou, pior: era alguém que, necessariamente, tinha em Eduardo Cunha o seu “líder”, sendo um súdito obediente da ordem direta das mãos do senhor Eduardo Cunha.

Aquele mesmo Eduardo Cunha a respeito do qual quase ninguém envolvido com política fora do Rio de Janeiro até 2014 tinha travado conhecimento, e todos viveram e trabalharam com política sem ele.

Quando alguns responderam que não, não tinham nada a ver com o tal Eduardo Cunha e sim, seriam contra ele caso fosse comprovado que ele era mesmo corrupto (o ilustre desconhecido dos 99%), ao contrário de petistas, que menosprezam a corrupção, caso seja o corrupto deles, uma escola de clichês, cujo vocabulário completo cabe em pouco mais de 15 palavras, tomou as redes:

https://twitter.com/Justiceiro_Sujo/status/775547838457606145

https://twitter.com/Justiceiro_Sujo/status/775548510515126272

É o que americanos chamam de dog whistle, o apito de cachorro: uma ordem dada para a militância organizada, para espalhar palavras de ordem por todo o jornalismo, que só eles sabem reconhecer. Foi muito usado para espalhar eufemismos e códigos para racismo. Hoje, é o vocabulário achatado que está tornando toda a esquerda repetitivamente circular: golpe Cunha coxinha direitos trabalhistas milhões da miséria feminismo LGBT minorias negros cotas racismo urnas (este último precisou ser cortado de cima, após o TSE notar algo errado).

Coluna de Fábio Porchat no Estadão: Fora Cunha!

O efeito pretendido é o do que também é chamado de astroturfing, a “grama sintética” que faz com que movimentos políticos verticais, com ordens vindas de cima, tenham uma aparência de horizontalidade, de algo “espontâneo” partindo do povo (conheça mais termos úteis para se entender a política neste excelente compilado de Cedê Silva).

O cacoete “E o Cunha?” deve ter sido a frase mais repetida de 2015 e a primeira metade de 2016. A associação com todos caiu por terra de repente.

Senso Incomum Facebook - E o Cunha?

https://www.facebook.com/sensoincomumorg/posts/1585500035087495

Com uma mentalidade cada vez mais reduzida a uma curtíssima série de bordões robóticos, o efeito Eduardo Cunha é geral: pega no povo e nos formadores de opinião do povo. Não havia perfil de jornalista no Facebook sem algum gigante “Fora Cunha”: sem a hegemonia do PT, que defende o corrupto deles, Cunha era uma unanimidade na crítica – justamente por não ter o mesmo aparelhamento de pensamento único da máquina petista que o transformou em bode expiatório.

O que sela o destino do PT a partir da cassação de Eduardo Cunha nesta segunda-feira é o desmonte do castelo de cartas de toda a narrativa petista. Seu bode expiatório foi sacrificado, e ninguém chorou o holocausto.

Todos aqueles que eram imediatamente associados a Eduardo Cunha, como se o deputado dilmista fosse o “herói” da direita, mostraram sua independência e que, ao contrário do PT, defendem uma justiça, e não uma pessoa. Até mesmo Jair Bolsonaro, anátema da esquerda, votou por sua cassação.

Bem ao contrário do que esperavam os petistas. Eles, que tanto gritaram o bordão “Fora Cunha”, não tiveram o que dizer ontem. Não tiveram o que comemorar. A arrelia, sem que o percebessem, só fazia sentido se nunca se consubstanciasse. Só serviria como ameaça, não como concretude: assim que Cunha caiu, caiu junto tudo o que os petistas tinham a dizer sobre o Brasil no mesmo segundo. Veja sua timeline: ninguém comemorou.

A confusão, uma refração ideológica, se deve porque o PT, além de confundir sua militância com o próprio povo, também confunde as ideologias políticas com partidos estanques formalizados. Como a esquerda brasileira está perfeitamente representada pelo PT, com seus partidos satélites mais antigos (PCdoB, PCB) e mais radicais (PSOL, PSTU, PCO) em sua órbita, ela crê que a nascente corrente liberal-conservadora do país esteja também formalmente consolidada nos partidos adversários do PT.

Fora Cunha UJSAssim, crêem fielmente que o PSDB seja um partido “liberal” (ainda mais sem entender o que significa o rótulo “neoliberal” imposto de fora ao partido na década de 90, que nada tem a ver com liberalismo). Ou que o DEM seja um partido “conservador”, fundado sobre os ideais de Tocqueville ou Russell Kirk. Ou ainda que Eduardo Cunha, o dilmista, o capitalista de Estado, o homem que esbulhou a Telerj (que o PT e a esquerda se recusaram a privatizar) e tem contas na Suíça que se desconfia que sejam justamente de contratos propineiros com a mesma Petrobras do PT, seja um representante da “direita”.

É neste sentido que a esquerda e os próprios petistas só teriam sobrevivência no mundo da relevância política se aprendessem que o PT é o único partido do país: o único aparato do Estado que pode conseguir mais poder do que possui, e o único do país com uma ideologia clara, um plano estratégico para seus objetivos. Todos os outros representam tão somente a vontade de poder (sob o eterno rótulo do interesse “democrático”) de seus próprios líderes.

Monstro Fora Cunha

No sentido que vai de GramsciRobert Michels, de Carl Schmitt a Antonio Negri, o único partido político de facto do Brasil é o PT: quem é contra o PT, em 99% dos casos, tapa o nariz e vota com nojo, sem ímpeto e paixão nenhuma (muito menos algo como a esperança). Acreditando que todo o resto da população está apenas no aspecto diametralmente oposto, os petistas caíram fácil na lorota de que as maiores manifestações públicas da história mundial contra Dilma eram em nome de alguém como Cunha (o ilustre desconhecido) ou mesmo Temer (da chapa da própria Dilma). A famosa projeção de sentimentos.

Tal como crêem fielmente na dicotomia desgastada do momento (como “esquerdistas defendem os direitos das mulheres, logo, direitistas defendem seu assassinato”, e tantas outras), acabam crendo que conhecem o mundo, tão somente por terem um palavreado com repertório fechado a dominar.

É a diferença que o filósofo Gottlob Frege faz entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung). Palavras sozinhas podem até fazer sentido (devemos ser contra “golpes”), mas é preciso verificar, fora de nosso linguajar auto-referente, se há mesmo um golpe em curso na realidade. Se o tal Eduardo Cunha é mesmo o capitão do impeachment. Se fora de nossa bolha, palavras como “esquerda” e “direita” representam mesmo realidades consubstanciadas nos partidos políticos, ou se só há uma esquerda consolidada e lideranças locais com uma vacuidade ideológica absoluta.

A direita está surgindo no Brasil, e a esquerda ainda nem sabe o que ela defende. Inventar que ela é apenas um PT invertido, como demonstra o efeito Eduardo Cunha, serviu como palavreado e desculpa pronta desde o mensalão, mas a verborréia oca já vinha dando sinais de desgaste ano após ano desde então.

Enquanto o efeito Eduardo Cunha some sem deixar nada no lugar (o que um petista tem a dizer sobre o Brasil a partir dessa semana?), num vácuo de poder que desde a Grécia Antiga se sabe ser o fim de um Império, a esquerda não tem consciência de que não sabe o que ela própria defende de substancial por trás de seus rótulos, variando de “direitos trabalhistas” a “feminismo”. Isto é sempre sinal de suicídio: ou os esquerdistas conhecem a direita e se tornam direitistas, ou serão lembrados como algo mais atrasado do que os malufistas ou (quem se lembra?) os janistas. Até Eduardo Cunha, em seu único ano sob holofotes, pode ter mais espaço na memória histórica.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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