Imprensa e parcialidade: um debate com o jornalista Gustavo Poli
Acusados de parcialidade, os profissionais da imprensa brasileira tendem a se defender por meio de um silogismo capenga. Mas será mesmo que a mídia é imparcial?
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“Si entre no haber sido y ser
hubiera el hombre elegido,
claro es que hubiera escogido
el no poder escoger”
(Ramón de Campoamor, o poeta dos isentões)
Dia desses, ao percorrer as tortuosas estradas das redes sociais, acabei indo parar por acaso no meio de uma interação virtual com o jornalista Gustavo Poli, da Rede Globo. Nos velhos tempos, mais ou menos lá pela época da festa de quinze anos da saudosa Inezita Barroso, a interação provavelmente teria sido chamada de entrevero, quiproquó, banzé, celeuma ou, muito simplesmente, de debate sobre o papel da imprensa brasileira. Hoje, chamam-na de “treta”.
Ela – a treta – dizia respeito ao viés de esquerda da imprensa brasileira, que eu afirmava e Poli negava. O argumento por ele apresentado é moeda-corrente dos jornalistas da grande imprensa quando postos na defensiva, e consiste no seguinte silogismo: se tanto a direita quanto a esquerda nos acusam de tender para o lado oposto, logo isso prova que temos agido de forma isenta e equilibrada.
O silogismo em questão é uma espécie, tipicamente jornalística, daquele gênero retórico descrito pelo filósofo Olavo de Carvalho como o argumento do “gostosão intelectual”:
“A fórmula é a seguinte: invente duas crenças opostas totalmente imaginárias e igualmente bocós, atribua-as a dois indivíduos quaisquer (que provavelmente jamais ouviram falar delas) e declare-se superior a ambas. Não é preciso explicá-las, nem discuti-las, nem provar que seus indigitados porta-vozes têm mesmo algo a ver com elas. Apenas dê um nome a cada uma e afirme, peremptoriamente, que são duas bobagens antagônicas, que você não cai num engodo nem no outro, que está acima de correntes de opinião, ideologias, estereótipos, o escambau.
A proclamação simples e direta de superioridade, desacompanhada dessa moldura de antagonismos, pode soar presunçosa e dar efeito negativo. Espremida entre duas alternativas abomináveis (pouco importa que perfeitamente inexistentes), adquire uma nobreza, uma elevação, um ar de insight dialético que é uma coisa de louco, maninho. Experimente e observe a reação da platéia, todos se olhando uns aos outros e confessando: ‘Como foi que não pensamos nisso antes? Que coisa mais genial! Nós, aqui, atormentados num dilema insolúvel, e então vem esse iluminado e nos liberta das falsas alternativas!’”
Vejam se o raciocínio do jornalista Gustavo Poli não se encaixa na fórmula:
“O que está claro é que toda teoria conspiratória é autoimune. Hoje temos um fantástico cenário no brasil onde direita e esquerda acusam a imprensa de ter a agenda adversária – e ambas não se tocam. Meu comentário é sempre ecoar a navalha de Hanzon: não se deve atribuir à malícia o que pode ser mais facilmente explicado pela incompetência. O Brasil seria muito pior se não tivesse vilões de desenho Disney”.
Transcrevo a seguir a minha resposta, e rogo aos leitores do Senso Incomum para que fiquem sempre alertas diante dessas tentativas de disfarçar a parcialidade pró-esquerda sob a capa de um isentismo postiço erguido sobre um non sequitur. Eis o que eu disse ao Poli (ou, antes, do Poli e do estado atual de sua profissão):
Acho que essa interpretação decorre do vício de raciocínio de achar que sempre, e necessariamente, a virtude (e a verdade) está no meio-termo entre duas posições extremas. Ora, do fato de que um sujeito afirme enfaticamente que 2+2=5, e outro, que 2+2=4, não segue que a verdade esteja no meio-termo, ou seja, no 4,5. Não. O primeiro sujeito está errado. Bem como está errada a esquerda ao apontar um viés de direita na imprensa brasileira.
Em primeiro lugar, isso seria sociologicamente impossível. Os profissionais do jornalismo são formados nas universidades, onde o predomínio de uma visão-de-mundo de esquerda (que, não obstante, quase nunca se traduz em uma doutrina clara e racionalmente formulável) é inegável. Seria um fenômeno verdadeiramente miraculoso que em nossa imprensa houvesse um certo equilíbrio entre esquerda e direita quando não há nem sinal desse equilíbrio nas faculdades de jornalismo (e basta uma consulta nas bibliografias dos cursos para constatá-lo).
O máximo de direitismo observado na imprensa nacional é a presença de jornalistas que se identificam com a defesa do liberalismo econômico puro, e mesmo assim eles são uma minoria. A imprensa brasileira é predominantemente de esquerda, seja a esquerda mais tradicional e de cultura política socialista, identificada partidariamente com o PT, seja a centro-esquerda social democrata (PSDB), ou ainda a esquerda mais contemporânea, interessada nos costumes, como a turma do PSOL, da REDE etc.
Não custa lembrar que, em pesquisa feita com jornalistas brasileiros, o PSOL foi eleito como o melhor partido do Parlamento brasileiro. Trata-se de um partido de extrema-esquerda – termo que, aliás, e ao contrário da onipresente “extrema-direita”, parece não existir no nosso vocabulário jornalístico, o que por si só já serviria para desmontar a hipótese do equilíbrio.
Se houvesse realmente equilíbrio de visões políticas no seio do jornalismo brasileiro, seria de se esperar que pelo menos algum jornal adotasse posição editorial mais favorável a Donald Trump nos EUA, por exemplo, ou ao Brexit. Afinal, a preferência por Donald Trump em detrimento de Hillary Clinton e a defesa da saída da Inglaterra da UE foram bandeiras apoiadas por muitos conservadores ao redor do mundo, inclusive por intelectuais brasileiros. Que os argumentos destes não tenham sido minimamente representados na grande imprensa, e sequer mesmo considerados de maneira justa, é mais uma prova de ausência de equilíbrio.
Como, aliás, reconheceu a jornalista da Globo Gioconda Brasil com rara honestidade: “No Brasil não existe cobertura das eleições americanas. Existe torcida pela Hillary Clinton”.
Ora, seria impossível essa torcida quase unânime por uma representante da esquerda americana se houvesse algum equilíbrio entre esquerda e direita na imprensa nacional.
De resto, o fenômeno não é uma peculiaridade brasileira. Em certa ocasião, Arthur S. Brisbane, então ombudsman do New York Times, publicou no jornal uma excelente auto-crítica, reconhecendo o predomínio do pensamento de esquerda na redação. Escreveu ele:
“Eu também notava, há dois anos [em sua coluna de estréia], que assumi as funções de ombudsman acreditando ‘não haver conspirações’, e que a produção do Times era por demais vasta e complexa para ser ditada por algum indivíduo ou cabala ao estilo Mágico de Oz. Eu ainda acredito nisso, mas também percebo que o formigueiro na Oitava Avenida [onde está localizada a sede do jornal nova-iorquino] é fortemente moldado por uma cultura de mentalidades afins [“a culture of like minds”, no original] – um fenômeno que acredito ser mais facilmente percebido de fora do que de dentro.
“Quando o Times cobre uma campanha presidencial [era época da disputa que culminou na reeleição de Barack Obama], eu noto que os principais editores e repórteres mostram-se disciplinados em promover equilíbrio e isenção, sendo usualmente bem-sucedidos. Através dos muitos departamentos do jornal, entretanto, tantos são os que compartilham uma espécie de progressismo político e cultural – por falta de melhor termo -, que essa visão-de-mundo virtualmente transborda para dentro do noticiário.
“Como resultado, processos tais como o movimento Occupy e o casamento gay parecem quase irromper dentro do Times, superestimados e mal-dimensionados, mais como causas do que como objetos de notícia” (grifos meus).
Creio que, pelo visto, nós brasileiros devemos esperar sentados por um exame de consciência equivalente por parte de nossos jornalistas. O que vemos por aqui é negação atrás de negação, no instante mesmo em que o ativismo jornalístico de esquerda se intensifica.
Poli mudou de assunto…
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