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A “polêmica” do comercial de Doritos no Super Bowl

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O Super Bowl, espécie de final do campeonato da NFL, a liga de futebol americano, faz a América parar. Todos os políticos, celebridades e, claro, americanos médios param para ver o jogo. E intelectuais também assistem o espetáculo anual, como a a Copa do Mundo é para nós, comuns mortais.

Ao contrário de um show “interrompido” por comerciais e intervalos, o Super Bowl faz questão de manter o entretenimento até mesmo nas pausas.

Os comerciais televisivos, além de os mais caros da TV americana, são um espetáculo. Nem nos comerciais o espetáculo é interrompido, com o país admirando o pensamento e criatividade usados para se vender um produto.

O salgadinho Doritos é famoso pelas propagandas polêmicas. E polêmicas, para uma sociedade baseada no indivíduo e não num plano coletivista como a americana, são uma espécie de combustível.

Desta feita, foi uma propaganda, na verdade, incrivelmente inócua. Engraçadinha. Até bem família. American way of life. Uma esquete que passaria despercebida em qualquer desenho animado – aliás, quaisquer 30 segundos aleatórios de Pica-Pau, Pernalonga ou Tom & Jerry têm mais “ofensa” do que o comercial. Nada polêmica.

Trata-se, simplesmente, de uma grávida fazendo procedimento de ultrassom. O pai, do lado, está comendo Doritos. A mãe, brava, dá uma bronca: isto lá é hora de comer Doritos? Mas o bebê reage ao aperitivo e quer pegá-lo. Quando a mãe joga o salgadinho longe, dá-se a entender que o bebê sai da barriga da mãe atrás da guloseima.

Quem isto poderia ofender?

Numa sociedade normal e saudável, os velhos criticam a pouca vergonha e a falta de valores tradicionais na TV, ficam ofendidos com qualquer palavrão que as crianças falam e pedem que eles comam coisas saudáveis ao invés de porcarias.

Numa sociedade como o Ocidente se suicidando atualmente, grupos progressistas, revoltados, críticos, chocantes, quebrantes de tabus, os jovens que são o futuro do país se ofenderam do que os velhos deram risada.

Um grupo pró-aborto, NARAL Pro-Choice America (anteriormente National Abortion Rights Action League) postou em resposta o tweet:

Literalmente: pede-se boicote ao Doritos pela tática #antiescolha (sic) de… humanizar fetos. Ou seja: fetos não são… humanos. Quando um comercial mostra o filho de dois seres humanos na barriga da mãe (uma cena tão emocionante que significa choros emocionantes em seres humanos – pense-se em como começa o drama de Ross, em Friends), ele está… humanizando fetos. Que não seriam “humanos”. Seria uma “tática” de propaganda. Uma baixaria.

Ainda com o adicional (tudo em 140 caracteres) da crítica ao clichê de pais tontos e mães à beira de um ataque de nervos. O que é, estranhamente, um pensamento completamente feminista, aliás o mais clichê de todo um modo de pensar que é mergulhar em clichês. Um ato falho, ou como dizem os americanos, um Freudian slip.

No comercial, a mãe, inclusive, critica até mesmo a marca Doritos, ao reclamar da falta de noção do pai naquele momento tão importante de ver o próprio filho pela primeira vez.

doritos-airplane-super-bowl-commericalÉ uma peça publicitária, portanto, que trabalha em várias camadas de pensamento – é o cuidado que publicitários tomam, para tornar tudo que é complexo em uma idéia apenas aparentemente simples. A ironia é a mãe criticar a marca num momento delicado, significativo e íntimo – mostrando que Doritos, afinal, é para ser comido em momentos despojados, sem significância e importância.

Ironia, a faculdade de significar o oposto do que se diz (“você é inteligente, hein?”), é algo que qualquer pessoa com QI acima de 87 é capaz de fisgar, mesmo que não seja capaz de explicar – o que, naturalmente, não é o caso de feministas, com seu binarismo “homens e sociedade capitalista são maus, mulheres que abortam são boas”.

Trabalhar com diversos níveis de linguagem, com nuances e sutilezas ao invés do binarismo amigo/inimigo, é o que diferencia a vida adulta da infantil e os grandes pensadores dos peões de manobra que servem a quem pensa por eles. O vulgo é incapaz de trabalhar com o cinza, só reagindo aos exageros de branco e preto. Foi o que se seguiu em resposta ao comercial.

O Huffington Post, coletânea de escritores comunistas americanos, declarou que o comercial já os faz repensar se vão comer Doritos novamente. O Adweek afirma que o comercial iniciou uma “conversa no Twitter sobre controle de nascimento”, nos típicos eufemismos progressistas que, ofendidos, não conseguem chamar as coisas pelo nome – como nossas mamães chamando nossos jaramaralhos de “piu-piu” para não falarmos porcaria.

(Os comunistas do Huffinton Post, como no Brasil, acreditam que são “contrários” à grande mídia, sem perceber que seu discurso é idêntico ao da CNN, como aqui é idêntico à Globo – exatamente para mostrar isto que o conservador Andrew Breitbart ajudou a fundá-lo.)

A polêmica é defendida desde a Primeira Emenda da Constituição. A sociedade americana não é uma sociedade que tem medo de “ofender”, que aceita a criminalização de qualquer coisa que possa parecer “ofensa” ou “ódio” a alguém hipersensível. É uma sociedade de idéias fortes, o que atrapalha quem tenha opiniões frágeis, impostas a toda a sociedade pela força, e não pela capacidade argumentativa.

Ou seja, é uma sociedade em que os indivíduos são livres e, sendo livres, estão à mercê de suas próprias escolhas e opiniões – ao contrário do plano social da Constituição Brasileira, praticamente obrigando todos a se amarem e obedecerem a um conjunto de regras sociais de aceitação que mudam conforme as gerações.

Antes não podíamos ofender nossas vovós carolas. Hoje não podemos ofender progressistas que consideram suas posições políticas e preferências sexuais tão sagradas e inquestionáveis quanto uma igreja pentecostal.

Uma sociedade livre não pode ter um conjunto de tabus hipersensíveis inquestionáveis. Na sociedade livre, as pessoas são, afinal, livres, e fazem o que quiserem, sem obedecer a um comando central.

Isto significa que as pessoas têm o direito até de falar bobagem – e as outras pessoas têm o direito de dizer que elas falaram bobagem. Nada da frescurite autoritária de semoventes falando em “lugar de fala” ou “quando o oprimido fala, o opressor abaixa a cabeça”, como no Brasil e seu planejamento central e opiniões “aceitáveis” pelo MEC.

doritos-superbowl-2014O mecanismo geral americano é o de que permitir a polêmica – incluindo o pensamento que se provará errado – mova toda a sociedade para frente. Ainda que nem todos os polêmicos estejam mais certos do que a maior parte da sociedade (muito pelo contrário), os “sobreviventes” é que promovem grandes avanços. Pense-se em Goethe ou Einstein, figuras que nunca apareceriam no Brasil – apenas copiamos o que já está pronto aceito pela maioria em sociedades livres.

Isto mostra um dos princípios fundamentais da filosofia política chamada conservadorismo, inclusive por que escolheu este nome infeliz, se não quer conservar tudo como está: a idéia de que a tradição é conhecimento.

O empirista David Hume (que, por sinal, não era religioso) era conservador por este valor à experiência: uma grande tradição de pensamento, livros, religiões, até a forma de se jogar xadrez e a cozinha da vovó (inclusive a carola da igreja pentecostal) são formas testadas e que passaram no teste, enquanto o que nosso “racionalismo” querendo modificar a sociedade graças aos nossos desejos não teve suas conseqüências imprevistas testadas na realidade, sendo uma mera abstração esquemática.

Isto significa que quando saímos demais da tradição, estamos num terreno em que as coisas podem dar certo, mas ainda não foram testadas (e quando o são, entram no cânone – basta pensar em Virginia Woolf ou David Foster Wallace). A maioria absoluta, sabe-se, dará com os burros n’água, e não podemos usar toda a sociedade como “experimento” de algum novo sabe-tudo auto-intitulado.

doritos_princessToda pessoa que recomende ao priminho de 8 anos ouvir Pink Floyd antes de se entusiasmar demais com o MC Tiroteio está aplicando o princípio do conservadorismo sem o perceber – ainda que não perceba o mesmo ao votar no PT e em qualquer um querendo “corrigir” o capitalismo na próxima eleição. É a confiança de que os homens costumam ser umas antas, mas a humanidade como um todo costuma ajeitar seus erros – e não de que, pelo contrário, um homem sozinho precise corrigir toda a sociedade, com abstrações como “igualdade” ou “exploração”.

O passado é uma compilação de polêmicas que deram certo. Um desfile de vitórias. Ser tradicionalista nada mais é do que ter os melhores polêmicos, os melhores críticos, os melhores revoltados. Ser progressista significa aceitar qualquer polêmico, qualquer crítico, qualquer revoltado, desde que tenha a vantagem gloriosa de estar vivo e seguindo a moda atual. Compare-se G. K. Chesterton e Eric Voegelin a Tico Santa Cruz e Jout Jout e sentirá a diferença entre direita e esquerda.

Também significa que a polêmica é benéfica para o conjunto, ainda que prejudicial aos indivíduos que se estrepam na tentativa de avançar uma tradição com milhares de anos de testes. Idéias infelizes, em forma ou conteúdo, terão como prejudicados sobretudo os autores de tais idéias: com menos consumidores, com mais desprezo do conjunto etc.

Curiosamente, este princípio evolutivo básico, darwinismo em nível vestibular, é recusado pela esquerda anti-capitalista, sem saber que Karl Marx tentou dedicar seu livro a Charles Darwin – que teve tempo de recusar a ominosa homenagem.

Uma sociedade livre é baseada neste princípio de que erros individuais fortalecem o conjunto. Uma sociedade de controle, como se quer ao se ofender com algo inofensivo como um comercial, se baseia na proibição de erros e polêmicas, pois a mera existência de indivíduos prejudica o planejamento abstrato.

A premissa que não é dita aqui é que se quer a uniformidade. Sem “polêmicas”, o que é um eufemismo cuidadoso para a obediência.

El Segundo residents Justin and Jill Folk created a commercial for the Doritos Crash Super Bowl contest that features their 15-month-old baby, Jonah. Their submission, "Sling Baby", has been named one of the five finalists out of over 6,000 entries. The contest is now in the public voting stage, and the commercial with the most votes will air during the Super Bowl -- with a chance to win $1 million. Jonah flashes a million-dollar smile as he takes a bite of one of his now-favorite snacks.

O singelo comercial de Doritos não é polêmico, mas exatamente por isto ofende tanto: é uma quebra de um planejamento central. Não é uma propaganda política, e sim uma propaganda anti-política: seu apelo é para se saborear a vida sem agendas, pela linguagem sem controle de burocratas, por se permitir fazer piada com o íntimo momento de se ver um filho, como qualquer ser humano faz, sem pedir licença ao Departamento de Saúde Pública e nem às Novas Diretrizes das Piadas Que Não Gerarão Chilique e Textão de Feministas, portaria da Secretaria de Direitos das Mulheres Que Já Têm Todos Os Direitos E Sem Precisar Carregar Balde de Roupa na Cabeça Estão de Frescurite no Facebook.

Por ser uma linguagem com muitas camadas, muito bem trabalhadas pelo publicitário, ofende aspirantes a pensadores (quase sempre, feministas e progressistas) que apenas sabem reagir de imediato ao que parece propaganda de sua causa e ao que parece propaganda contrária.

Foi o que fez o aspirante a escritor Marcelo Rubens Paiva no Estadão, desqualificado em demasia para escrever um texto sem um parágrafo que faça alguém com inteligência acima da Ana Maria Braga cavar um buraco no chão de vergonha.

Rubens Paiva reclama do “show no intervalo branco demais” (sic) da banda Coldplay (uma das mais esquerdistas do cabedal de bandas esquerdistas americanas), “que, no ano da polêmica do Oscar sem negros, (…) ganhou reforço de Bruno Mars e Beyoncé”.

Ou seja, o show foi tão “branco demais” que tinha dois brancos para um negro (num país em que negros não somam 13% da população), e o colunista ignora que o show inteiro, além do arco-íris da causa gay, fez uma homenagem pouco disfarçada aos Panteras Negras, grupo terrorista de ativismo negro célebre na América. É este tipo de ignorante que quer planejar até a quantidade de negros do Oscar.

Para totalitários controladores como Marcelo Rubens Paiva, a polêmica é terrível. É de “mau gosto”. Tudo o que seja polêmica, para tais pensadores, é anátema, pecado, heresia.

Os “meio intelectuais, meio de esquerda”, só sabem mesmo ser “meio intelectuais” ao copiar outros esquerdistas. Por isto a grita por “igualdade” (ou seja, obediência e cópia). Pensar sozinho, estar desnudo diante do julgamento do populacho sem medo de ser uma idéia própria, é o que mais atrapalha uma sociedade planejada – em que as pessoas são peões e eles são os reis.

doritos-superbowl-2013Curiosamente, Marcelo Rubens Paiva só está no Estadão justamente por ser um nome “forte”, que a canalha quer ler apenas pelo nome do autor, e não pelo conteúdo – afinal, Rubens Paiva tem sobrenome de filho de perseguido na ditadura. Já nasceu no berço de ouro da classe falante brasileira, o palpitariado que não pode falar do que não sabe. Imagine-se taxar o direito à herança das colunas de jornal. Seus livros em si são intragáveis. É a “tradição” brasileira e sua galeria de fracassados que transformaram o Brasil no que é.

É um contraste gritante entre a terra da liberdade e lar dos bravos que é a América e, de outro, o cabedal de erros alçados a “gênios que ainda não foram ouvidos direito e precisam nos controlar mais” que é o Brasil. Com o Huffington Post tentando transformar a América no Brasil.

Na tradição da liberdade, os hipersensíveis são velhinhas da Igreja Pentecostal lamentando a falta de valores do mundo. No Brasil e na América do politicamente correto, são jovens (e jovens de 50 anos como Marcelo Rubens Paiva) com sua ânsia de controle que são capazes de se ofender com um comercial por ele não querer matar seres humanos.

Seres humanos sendo humanos é algo completamente proibido ao plano de governo da esquerda. Afinal, até mesmo o aborto na América foi liberado sem discussão pública – uma “polêmica” sobre o assunto e o pensamento livre, ofensivo como é, pode atrapalhar o plano centralizado. Vai que as pessoas pensando sozinhas passem a discordar dos funcionários públicos controlando tudo?

Pensar sozinho acaba tendo como escoramento a realidade. E, na realidade, fetos são humanos. Agem como humanos. Talvez até gostem de Doritos. E os pais, ao verem um bebê, não têm como primeiro pensamento: “isto não é humano, e deve ser abortado”. Na realidade, seres humanos celebram a vida, e comemoram bebês, e não abortos.

Sociedades de controle, com sua necessidade de mandar nos outros, são frágeis quando alguém mostra que a vida é melhor saboreada sem políticos tentando fazer o povo acreditar em seus delírios. Nada é mais fanaticamente crente, hoje, do que alguém com um projeto social.

As velhinhas carolas da igreja pentecostal de antigamente é que sabiam quebrar tabus.

Este artigo não teve nenhum patrocínio de Doritos. Corrija isto contribuindo para manter o Senso Incomum no ar sendo nosso patrão através do Patreon

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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