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Uber e os tapumes do Haddad

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Dentre várias, destacam-se duas formas de se oferecer um serviço de qualidade para a população.

Partindo-se de um pressuposto forçado de que toda a humanidade é cretina, manipuladora e mau caráter (pressuposto este que parece o padrão no pensamento brasileiro, de conversas de bar ao alto escalão político, onde a premissa parece ter alguma razão de ser), podemos pensar em formas de forçar os prestadores de serviço a oferecerem algo de qualidade à população.

A primeira forma das formas mais reconhecidas, que obteve seu auge no século XX, é usando o Estado para forçar as empresas, vendedores e pequenos agentes do setor privado a serem menos gananciosos, malvados, estróinas e malévolos.

Assim, basta presumir que empresários são ruins por definição, e que burocratas do Estado, com suas portarias, secretarias, diretorias, éditos, decretos, obrigações e proibições são anjos preocupados com o nosso bem-estar.

Caso algum dos órgãos estatais ele próprio não estiver funcionando a contento para obrigar alguém a agir em nome de nosso bem-estar, basta recorrer a outro órgão estatal. E se o outro órgão estatal também não estiver muito bem nos seus afazeres, basta recorrer a um terceiro. And so on.

Este é o mundo perfeito descrito em romances como O Processo, de Franz Kafka. Alguns confiam bastante nesse modelo. É o preferido no Brasil.

south-park-yelpA segunda forma, burilada e avançadíssima no mundo hoje, é uma avaliação dos próprios clientes. Cuidando de mecanismos de defesa do sistema como o anonimato, a transparência e a garantia de que os próprios fornecedores de serviço não vão manipular, novamente, a opinião pública a seu favor, a maior parte dos serviços da década de 10 do século XXI avança justamente calcada na pressão do próprio consumidor para que os serviços sejam bons, e que o fornecedor de serviços seja penalizado com más avaliações e, por conseguinte, menos clientes e dinheiro caso não satisfaça sua clientela.

É uma espécie de capitalismo selvagem, sempre pensando que o cliente tem sempre razão em primeiro lugar (ao contrário do modelo em que o burocrata do Estado tem sempre razão).

Basta ver quantos mecanismos funcionam atocaiados nesta premissa, e como são preferidos do povo: Mercado Livre, Netflix, Yelp!, iFood, Booking, TripAdvisor, Spotify, Crackle, Reclame Aqui, HotWire, Knowzz, Uber (até o Waze faz isto com o trânsito, recomendando ruas e “punindo” outras).

Qualquer site, app ou modelo de negócios em que os próprios clientes dêem notas, recomendações ou críticas ao serviço, orientando outros clientes, segue tal modelo. Usuários deste tipo de serviço raramente querem voltar ao “teste cego” anterior. Por isso as curtidas do Facebook fazem tanto sucesso.

É o que o pensador finlandês Pekka Himanen chama de “ética hacker”, seguindo o espírito de hacks (algo como “truques”) da era de ao menos aparente descentralização da internet. Esta filosofia de negócios percebe que, diferentemente do capitalismo não-digital, que sempre depende da mídia (e esta, sempre depende ou dialoga demais com agentes políticos), a era dos negócios digitais possui uma ética baseada no compartilhamento de informações.

Como resultado mais sociológico ou filosófico, o modelo de sociedade gerado pela internet assemelha-se a uma gigantesca “aldeia global” (um dos sentidos originais da idéia por detrás da world wide web) – ou seja, ao invés do poder, do dinheiro inicial (a famigerada “classe social”), da beleza ou de qualquer outro mecanismo de hierarquização da sociedade, a internet nos faria voltar a um modelo de sociedade baseada na reputação.

Não mais, é claro, na reputação moral coletiva das sociedades tribais, mas numa descentralizada forma de causa e conseqüência do grande público enxergando agrado ou desagrado imediatamente (bem diferentemente do modelo da televisão ou das cartas aos jornais, por exemplo).

Jeff Potter, outro hacker que aplica os mesmos princípios científicos e da ética hacker à culinária, nota como o conhecimento compartilhado é mais benquisto hoje do que o segredo arcano. Se antes um sábio, filósofo ou mesmo geek era considerado mais alumiado quanto mais hermético fosse, a era da informação digital torna algo mais palatável e poderoso quanto mais for recomendável pelo público em geral.

Nesta segunda forma destacada de oferecer um melhor serviço, a concorrência e a satisfação do consumidor são as leis fundamentais. O empresário deve lutar para que seu cliente lhe recomende ao próximo cliente, ou não adiantará muito torrar milhões de reais com propagandas envolvendo sol, cerveja e mulheres semi-nuas no intervalo comercial do Jornal Nacional para melhorar sua imagem.

jornalista agredido taxistasO Uber, de todos estes exemplos supracitados, é o que gera mais desavenças entre os defensores do antigo modelo de gestão, do Estado obrigando a sociedade a obedecer suas normas. Como funciona em concorrência direta (e física), lado a lado, com o antigo modelo dos taxis, enfrenta até aos sopapos e pontapés os defensores do antigo modelo, como os sindicatos de taxistas e os governantes e burocratas que não desejam que as pessoas escolham algo livremente e troquem seu dinheiro por um serviço que desejam, sem que estes burocratas fiquem com uma parte de tal dinheiro por alguma razão auto-declarada. É o modelo de sindicalismo tanto do socialismo quanto do fascismo, modelo mais próximo do socialismo do século XXI do que o próprio socialismo.

Nada tornou mais clara o brutal rompimento da realidade do que as normas regulatórias do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do PT, em relação à forma de “regulamentar” (ou seja, obrigar) os taxis para enfrentar a concorrência com o Uber.

Como as tentativas de proibir as pessoas de preferirem o Uber (e tantos outros serviços, como o Netflix, cada vez mais na mira da Ancine, apenas em um dos vários exemplos) deu com os burros n’água e a aprovação do prefeito da quarta maior cidade do mundo despencando ainda mais, o petista preferiu atacar pelo inverso: obrigar os taxis a se parecerem com o Uber.

Antes disso, Haddad já havia lançado um novo tipo de taxis na cidade. Os normais são tradicionalmente brancos. Depois de 5 mil alvarás, Haddad lançou os taxis pretos, para se confundirem com o Uber Black. Ou seja: se os paulistanos (e também sua super-categoria, os seres humanos) estão preferindo o Uber, o prefeito, ainda no mundo kafkiano, crê que a grande questão é a… cor dos carros (sic). Algo que aprendeu bastante lendo Habermas e a Escola de Frankfurt.

Agora, o modelo PT, o modelo da social-democracia, o modelo da obrigação e da proibição, o modelo da força física do Estado, o modelo da aparência no lugar da eficiência, ultrapassou todas as anteriores certidões de divórcio do mundo real do progressismo e da esquerda, ainda crendo ser o futuro com um pensamento de 1917.

As novas normas de Haddad (normas que tentam, inconstitucionalmente, criarem obrigações por cima de leis que não obrigam ninguém ao que quer obrigar) elencaram uma série de comportamentos que os taxistas deveriam obedecer, se quiserem ainda ter o direito de trabalhar.

Entre as novas diretrizes do Ministério da Felicidade Haddadista incluem-se, mas não se limitam a: proibir conversas a respeito de futebol, de religião e de política. Se motorista passageiro forem corintianos, católicos e eleitores de algum partido específico (ou, a tradição suprema de São Paulo: preferirem qualquer político a um petista), terão de se entreolhar em silêncio e transmitirem sua mútua concordância por telepatia e, talvez, olhares e sinais com a cabeça.

Também se obriga a um dress code para os motoristas, que terão de se vestir quase como os motoristas do Uber, mas recebendo menos e pagando mais para o prefeito. Em taxis comuns, traje “social” ou “esporte fino”. Sapatos sociais, desconfortáveis para se dirigir por horas e que quase nenhum passageiro irá ver, são mandatórios. Camisa não pode ter estampa – e precisa ser abotoada, exceto o colarinho. Para os taxis vermelhos, é obrigatória a gravata. Já os luxo exigem terno ou smoking.

Repetindo: terno ou… smoking.

Smoking.

SMOKING.

S M O K I N G.

Já as mulheres são obrigadas a usar tailleur. Ou, como disse Sérgio Quintela na Veja São Paulo, “em resumo, para quem se perdeu: homens trabalham vestidos de Haddad e mulheres, de Marta Suplicy”.

downton abbey John BatesFora o ridículo estético e ético para uma cidade com tendência a ultrapassar os 35 graus centígrados no verão, as proibições afrontam qualquer liberdade de expressão (taxistas são “recomendados” a não se queixar da própria profissão, por exemplo). Falar mal do prefeito, a tradição número 1 de qualquer pessoa que já entrou num taxi em São Paulo ou no Brasil? Os riscos são de enfrentar a força física da lei. E multa de R$ 35,52 a cada infração.

Tudo isto em nome do bem-estar do passageiro, que poderá se sentir mais próximo de um Uber, mesmo sem ar condicionado, sem água, sem carro confortável. Tudo para o nosso bem.

Ah, os motoristas também devem recepcionar o passageiro com “otimismo ou alegria”. Motorista, será que vai chover e conseguiremos chegar no Viaduto do Chá em 15 minutos antes de se iniciar o protesto do MPL desse jeito que está São Paulo? Em caso negativo, já são R$ 35,52 de multa. Ou R$ 71,04, aparentemente. Com risco de se tornar R$ 106,56, caso alguém tome por “São Paulo” o Futebol Clube.

Alexandre Borges nos lembra que Bill Whitle afirma que o problema da esquerda é que precisa cobrir a realidade com tapumes, enquanto a direita só precisa falar a verdade. Vez por outra, a esquerda consegue impor sua mentira em grandes países civilizados, mas a direita só precisa relembrar da verdade óbvia (não à toa, o site de Bill Whitle se chama The Common Sense Resistance, mostrando a necessidade de resgate de um senso comum que foi tornado incomum pela manipulação esquerdista).

Enquanto precisamos apenas falar a verdade, há sempre algum progressista lunático empolado em verborragia acadêmica confundindo afetação e abstração cada vez mais apartada da concretude dos fatos, escorado em alguma coluna da Folha de S. Paulo, para cobrir a realidade com tapumes.

Ou vestir um taxista de smoking.

(para uma crítica dilacerante sobre as conclusões políticas de Pekka Himanen, a despeito dos acertos de seu diagnóstico, leia o obrigatório livro de Evgeny Morozov, The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom, com todas as críticas aos “cyber-utópicos” que estão fazendo tanto barulho, inclusive, no Brasil – e na frente da prefeitura de Fernando Haddad.)

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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