José de Souza Martins nas páginas amarelas: intelectual sem conceitos
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Observe as duas sentenças abaixo:
A) Dois mais dois são quatro.
B) Eu sou eleitor de George W. Bush. Dois mais dois são quatro.
Com qual das duas sentenças o leitor concorda?
Apesar de ambas terem o mesmo valor de verdade, a reação do leitor às duas sentenças não é igual. Mesmo que o leitor odeie George W. Bush (este ser tão odiado pelo mundo inteiro, e menos odiado no país com as maiores universidades de ponta), mesmo assim pode concordar com a segunda sentença por inteiro: quem a profere pode mesmo ser eleitor de George W. Bush, e dois e dois são mesmo quatro.
Esta é a chamada dimensão psicológica da linguagem, tão bem conhecida da filosofia escolástica medieval. Trata-se do conteúdo emocional evocado pelas palavras – suas imagens relacionadas, com nuances e emoções conjuradas espontaneamente, quase sem controle do ouvinte.
Na retórica, tal dimensão é chamada de conotação da palavra. O valor conotativo (subjetivo, emocional) é a arma suprema dos propagandistas e marqueteiros, que podem invocar ou rememorar sentimentos positivos ou negativos, associando tais impressões subjetivas sem forma ou conteúdo específicos a um objeto ainda desconhecido do ouvinte ou leitor.
A verdade objetiva, afinal, ao contrário de nossa crença, é sempre mediada pela linguagem, pelos sentimentos, pelas memórias, pelas circunstâncias.
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O sociólogo José de Souza Martins deu entrevista às páginas amarelas da VEJA nesta semana. Considerado um dos maiores intelectuais sobre conflitos fundiários, em três páginas o entrevistado deu mostras incontáveis do uso e abuso do sentimentalismo da linguagem ao falar da tese de seu livro, Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder (ed. Contexto).
Num país viciado na idéia do “social” e de suas explicações sobrepujando qualquer força individual, as teses de sociólogos ganham aceitação imediata e obediência incondicional de uma grande parcela da Academia e da classe falante ao retirarem razões, explicações e conclusões de indivíduos e jogando-os ao social.
O truque rende ainda mais encômios se for eivado do abuso da dimensão psicológica da linguagem, associando-se sentimentos a uma parcela da sociedade (um partido, uma ideologia, uma “classe”), fazendo com que alunos e comentadores creiam estar fazendo ciência e observando a realidade friamente, quando apenas reafirmam seu sentimento de pertencimento ao grupo que escolheram antecipadamente, cegando-se justamente à realidade social e aferrando-se à subjetividade manipulando os fatos.
José de Souza Martins começa respondendo a uma pergunta capciosa: “Por que o senhor afirma em seu livro que o PT é um partido conservador?”
Um sociólogo nunca afirmaria que o PT é um partido conservador, sabendo que estamos falando de um partido político e que existe uma ideologia política chamada conservadorismo. É o nome da ideologia, e nomes não significam descrições (alguém chamado “Renato” não precisa ter “renascido”). Mas não é isto que José de Souza Martins busca, mas jogar sentimentos difusos no ar de seus leitores.
Qualquer pensamento filosófico ou científico pós-Sócrates sabe que precisa lidar com definições claras – o que é o movimento? O que é o átomo? O que causa dengue? O que provoca inflação? Já nosso sociólogo não está nem um pouco preocupado em definir o que é um político ou partido conservador.
Conservadorismo é o nome de uma filosofia política que surgiu como reação (e não mero retorno ao passado) ao terror jacobino na Revolução Francesa, que guilhotinou inclusive seus próprios teóricos. Teve como seu grande norte o político Edmund Burke (por sinal, do partido menos conservador, o Whig). Outros grandes nomes variam do poeta e crítico literário Samuel Taylor Coleridge ao satirista da Revolução Francesa Rivarol.
Trata-se da posição política que desconfia de soluções políticas através do incremento do poder estatal para resolver problemas sociais. Trata-se de uma visão de que as instituições podem ser minadas se ocupadas por pessoas que só buscam o próprio poder. Trata-se de um ideário que busca uma moral firme, sobretudo de homens públicos. Trata-se de uma percepção que prefere cuidar dos aspectos culturais da sociedade para que eles se reflitam na política e economia – e não o contrário. Trata-se do pensamento de que as coisas são mais facilmente destruídas do que construídas. Trata-se de uma cosmovisão que atesta que leis não mudam costumes, e um norte moral cultural é mais importante do que um político ou partido salvador.
Ou seja, tudo exatamente oposto ao que o PT faz. E como o PT sabe que faz, afinal, odeia conservadores.
José de Souza Martins não acredita que o PT é de fato conservador. Ao menos, não parece nem sequer saber o que conservadorismo é. Apenas utiliza a dimensão psicológica da linguagem, seu caráter denotativo – quando um vocábulo invoca outra coisa nos sentimentos e percepção do receptor da mensagem.
Conservadorismo, para um país sem tradição conservadora alguma (ao contrário da América, Inglaterra, Israel, Japão ou Áustria), parece significar apenas pessoas que querem conservar o mundo como está. É o exemplo que José de Souza Martins dá para explicar por que considera o PT conservador: ele não realizou a reforma agrária. Tão somente isso.
Se o mundo é injusto, os conservadores, se querem conservador o mundo como está, são os campeões da injustiça. E quanto mais revolucionário se é, mais justo e correto e defensável.
Isto, na verdade, é tentar extrair o significado de uma palavra do seu próprio significante – o nome dado a ela. É a crença da esquerda brasileira, que nunca leu nada a respeito de conservadorismo, mas vive de criticá-lo: o dogma de que conservador é quem quer conservar tudo como está. Aplique-se o mesmo método científico ao pagodeiro Belo e se verá rapidamente qual o problema dos revolucionários e “críticos” que apenas obedecem ao que seus professores mandam pensar.
É apenas um nome, não uma descrição de características. Mas se parece injusto e evoca sentimentos de repulsa, lá estará o sociólogo chamando algo de “conservador” quando apenas quer xingar o objeto. Vira um mero substituto para o tradicional “desgraçado”. Ou como uma palavra adequada para substituir palavrões em jantares e entrevistas.
Segundo José de Souza Martins, o PT “nunca chegou a ser um partido de esquerda” – afinal, esquerda de verdade é aquela que funciona e onde todos são ricos e prósperos e inteligentes e poderosos. Exatamente como todo país de maioria… de direita no mundo. A esquerda “de verdade”, afinal, é aquela esquerda com a curiosa característica de não existir. A esquerda que existe por aí e vemos e sentimos o cheiro é sempre a esquerda de mentira.
Para José de Souza Martins, o PT é “um partido católico”, porque nasceu nas pastorais de base da Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação foi praticamente criada pela KGB para dominar o último bastião anti-comunista no mundo fora da política, a Igreja Católica (que, no Brasil, passou mais de um século sem falar um A a respeito de política e partidos). Tanto é que seus grandes nomes, como Leonardo Boff e “Frei” Betto, foram expulsos da Igreja. Suas declarações públicas nunca se referem a São Tomás de Aquino ou Bento XVI, mas apenas a tentar pintar Jesus Cristo como um marxista para católicos pouco letrados caírem na esparrela.
É usando tais sentimentalismos de conceitos nebulosos, pouco definidos, e palavras que causam forte comoção em seus leitores, que José de Souza Martins constrói sua narrativa, sua teoria. E não se importa com contradições flagrantes: já na pergunta seguinte, afirma que o PSDB não pode ser chamado de “direita” (o que é correto) porque “o PSDB é tão social-democrata quanto o PT”, o que é uma verdade auto-evidente. Mas… isto não é uma contradição flagrante com o que acabara de afirmar?
Tudo o que José de Souza Martins afirma é usando essa conotação, nunca uma definição. Ao falar das classes sociais, aponta corretamente que elas não existem, mas são a base de pensamento de tudo quanto é sociólogo. Mas logo afirma que “os operários” não estão coadunados com o discurso petista. Alguém já viu um operário e, sobretudo, uma “classe operária” gigantesca vanguarda da produção econômica por aí?
José de Souza Martins acerta em diversas questões: sobre o corporativismo petista, sobre o erro da crença na “corrupção do bem” (aquela para manter o partido no poder), sobre como Lula se blindou e sobreviveu aos escândalos de corrupção. Até fala que, para Lula, a política é uma performance, um teatro – uma metáfora usada tanto pelo comunista Karl Marx quanto por um dos maiores nomes do conservadorismo mundial (e um dos raríssimos lidos na Academia), Alexis de Tocqueville.
Mas intelectuais precisam trabalhar com conceitos claros. É o que Sócrates faz ao tentar definir as coisas: não com exemplos amalucados que apenas confundem, mas buscando leis gerais.
Ao se perguntar o que é o bem, todos vão dar um exemplo de si próprios para dizer que são bons e morais e éticos, mas a filosofia hard só surge com leis gerais. Com conceitos claros. Com definições concretas além da confusão das palavras.
Mas intelectuais brasileiros costumam cair demais na maçaroca capilosa das palavras. Se encantam por palavras de belos sentimentos (como o péssimo uso hodierno da palavra “democracia”), jogam palavras que evocam mazelas aos inimigos indistintamente – e tome “fascista”, “racista” (e, hoje, “homofóbico” e “machista”) pra todo lado.
Infelizmente, para a produção acadêmica e intelectual brasileira, trata-se sempre de um trabalho tão afeito a José de Souza Martins: o de garimpeiro, peneirando em busca de algumas pequenas contribuições interessantes e pensamentos mais duradouros num lamaçal de palavras confusas, contradições e sentimentalismo em forma de artigo científico.
Se é assim para falar de algo óbvio como uma crise econômica ou de um mosquito que transmite doenças, não tente imaginar como avança quando se discute política.
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