Átila Iamarino e a “ciência” do partido comunista chinês
Carteirada, autoridade, histeria e terrorismo não são ciência, não importa quem te diga o contrário
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Muita gente, especialmente quando adolescente, viveu uma fase de deslumbramento com a “ciência” (sim, entre aspas). Numa fase de transgressão e questionamento de autoridades, o adolescente assiste documentários de divulgadores científicos (Bill Nye, por exemplo, o “science guy” americano, é um reles engenheiro) e se deslumbra com o que ali lhe é apresentado como “ciência”. E mantém quer como fase, quer como algo permanente de uma preocupante adolescência tardia, um cientificismo rasteiro e desmedido, suficiente para deixar o mais moderado filósofo da ciência de cabelos em pé: a ciência é a única forma de conhecimento possível, tudo que não possa ser submetido ao crivo científico não existe ou não importa, o cientista – ou ainda pior – o “divulgador científico” toma o lugar antes ocupado pelo sacerdote, numa postura profundamente… anticientífica e ideológica (cientificismo).
Nada disso é novo e revela a profunda ignorância intelectual de seus proponentes – tolerável entre adolescentes biológicos, mas descabida entre os tardios. A proposta de substituir a autoridade sacerdotal pela autoridade do philosophe racional já era o cerne do projeto iluminista. A ideia de que qualquer conhecimento que não se adeque ao método científico (seja lá qual ele for) não existe ou não importa e até mesmo que afirmações que não se submetam ao crivo do empirismo não fazem sentido remontam ao positivismo e um de seus braços, o positivismo lógico, modismo intelectual do começo do século XX, totalmente obliterado e descartado por contundentes e definitivas críticas posteriores, que qualquer primeiro-anista do mais fuleiro curso de filosofia está ciente. Aliás, quem estiver em dúvida se ainda não abandonou a adolescência tardia, fica a sugestão de um clássico das disciplinas de filosofia da ciência, que demole o deslumbramento abobalhado com a “ciência”, o livro O que é ciência, afinal? do filósofo britânico Alan Chalmers.
Na esteira dessa “ciência” fuleira, muitos divulgadores científicos se servem da aura sacerdotal que adquiriram graças à cultura vigente e se aproveitam para inserir afirmações políticas – questionáveis e discutíveis como quaisquer outras da mesma natureza – no pacote que vendem e que está blindado contra críticas, pois, afinal de contas, a “ciência” dos sacerdotes modernos não pode ser questionada, mesmo quando incorporam afirmações como elogios a governos autoritários ou opiniões sobre a liderança do mundo livre. Um fato cômico, ainda que trágico, é que na boca de muitos desses divulgadores científicos circulam frases de efeito, que até incluem alguma verdade, mas refutam completamente as posturas autoritárias de seus adeptos, bem como dos seus agressivos fandoms: ciência é muito mais sobre um método para compreender o mundo do que sobre qualquer outra coisa, inclusive autoridade.
É o caso de Átila Iamarino, que, desde que equivocadamente profetizou a morte de milhões de pessoas, triplicou a audiência do seu canal, ganhou uma coluna no jornal Folha de São Paulo e uma cadeira no Roda Vida:
O método científico não sofreu alterações paradigmáticas e revolucionárias desde 2009, tampouco o Partido Comunista Chinês. A única coisa que mudou mesmo foi a opinião de Átila sobre o regime:
A OMS, que já mudou de posição mais vezes que um falso profeta televisivo (sobre a transmissão do vírus entre humanos, sobre o uso de máscaras, sobre sua natureza pandêmica) está na mesma barca que Átila: um cordeirinho com o PCC (ainda que a China não figure sequer entre os 10 principais doadores da entidade, ao passo que a América é a primeira, com 400 milhões de dólares anuais de crédito) e, por exemplo, um tigre contra Taiwan e contra os Estados Unidos da América. Zero ciência e muita política.
E essa tem sido a tônica da abordagem de Iamarino e de seus fãs. Muita política, pouca ciência e, pior, muita política travestida de ciência. No primeiro vídeo, o virologista orientado em seu doutoramento por Paulo Zanotto, um candidato a substituto de Mandetta, usou como manchete para atrair cliques a possibilidade de milhões de mortos pelo coronavírus no Brasil. E ali, antes da triplicação da audiência, da coluna na Folha e da ida ao Roda Viva de Vera Magalhães, já existiam erros crassos.
Primeiramente, o pressuposto para que o pior quadro possível se tornasse realidade é de que “nada fosse feito”. Um quadro virtualmente inexistente, pois mesmo os mais céticos defenderam alguma forma de isolamento, mesmo que vertical e isso já é “fazer alguma coisa”. Ainda assim, para surpresa dos que acreditam que essa gente está preocupada com o espalhamento de “Fake News”, a notícia correu pelo WhatsApp, assustando especialmente os mais incautos com a possibilidade de milhões de mortes. Ainda, note-se, que o “se nada for feito” é um salvo-conduto onipotente para a “análise”, pois na medida em que “algo” é feito, todos estão livres de responsabilidade de explicar a falsa profecia.
Mas não precisamos ir tão longe, porque o quadro “mais otimista” revelado no mesmo vídeo, obtido por meio da aplicação indevida (não foi produzido para considerar as variáveis brasileiras) do estudo do Imperial College no Brasil e que Iamarino usou uma postagem na rede social Reddit para discutir dias antes da divulgação do apocalipse – essa deve ser a “revisão por pares” de cientistas enquanto “divulgadores ‘científicos’”, diz que invariavelmente morrerão 44.000 pessoas no Brasil. Mais que o dobro de países como Itália e Espanha, centros de disseminação da doença que já falam em reabertura de atividades não-essenciais. Os EUA, novo epicentro da doença, sem sistema único de saúde e com 100 milhões de habitantes a mais que o Brasil, não atingiu nem 70% do montante ainda e o governador democrata de Nova York afirma que “o pior já passou”.
Nesse ponto, parece que temos o que vem sendo exigido de todos que concordam com Iamarino: um parâmetro de falseação. Quando podemos saber que os modelos falharam? Que as profecias não se concretizaram porque elementos da realidade não foram considerados durante o processo? Entre 44 mil e 1 milhão há um longo intervalo para acerto. Quando podemos dizer que houve erro? 5 milhões de mortes prova que houve equívoco no estudo? 10 milhões? E no sentido inverso, quanto seria um número que prova que o estudo estava equivocado? 5 mil mortes seria um bom parâmetro, NOVE vezes menos que a especulação mais otimista?
Não se percam aqui, ao cobrar esse tipo de coisa, estamos fazendo filosofia da ciência básica, elementar e imprescindível. Quem diz sou eu, filósofos da ciência e gente que Átilas e outros tipos têm como guru.
Karl Popper, filósofo da ciência, dizia que boas teorias científicas fazem previsões. Quanto mais específicas as previsões, melhor. As previsões se mostraram precisas? Ótimo, estamos – provavelmente, pois nunca há certeza – diante de uma boa teoria científica. As previsões falharam miseravelmente? Estamos diante de uma má teoria científica. As previsões copiadas de Iamarino já são específicas, mas em benefício da dúvida e do modelo, podemos estabelecer padrões ainda mais flexíveis. Quais são eles? Por que os defensores do “cientista” se negam a expô-los? O estudo do Imperial College foi criticado por pares, mas essa crítica foi lida? Divulgada? Considerada? Ou apenas prevaleceu a narrativa terrorista inicialmente propalada? Sunetra Gupta, em crítica ao estudo de Ferguson, afirmou que a população do Reino Unido poderia estar infectada já em sua metade quando o estudo foi divulgado, o que diminuiria em larga escala a quantidade de futuros infectados e mortos. A opção por não tratar de nada disso passa longe de ter razões científicas.
Nem eu, nem Karl Popper, somos os únicos a chamar a atenção para esse e tantos aspectos que imbricam-se com a análise do que é “ciência de verdade”, Michael Shermer, rememorando Carl Sagan, no segundo 0:59 ao minuto 1:30 do vídeo abaixo pergunta: “alguém já tentou provar que sua teoria está errada? Isso é super importante porque todos pensam que estão certos e todo site tem testemunhos sobre seu produto ou ideia, o problema não é o que seus apoiadores dizem, mas o que as pessoas que discordam de você dizem? Alguém fez experimentos tentando contraprovar sua teoria? Em ciência isso é básico”. Isso é dito em um vídeo sobre como detectar besteiras:
Em resumo, o que vimos até aqui não são disputas científicas, mas tentativas de se verificar quem tem mais força para emplacar uma narrativa política. De um lado, quem crê que o vírus é sério e medidas precisam ser tomadas, mas não se trata do fim dos tempos. De outro, gente que dá azo à narrativa do autoritário regime chinês, que mantém gente em campos de concentração por razões religiosas e mente descaradamente sobre seus dados, comprometendo estudos operados pelo mundo livre:
E a coisa não parou por aí, pois novamente tomando conclusões precipitadas e absorvidas de estudos alheios, Iamarino dobrou a meta ontem e virou trending topics do Twitter. Segundo sua interpretação apocalíptica das coisas, os efeitos do coronavírus serão sentidos até 2022 ou 2024, com constantes períodos de quarentena ou distanciamento social intermitente.
Antes de mais nada, note-se que Iamarino, imprensa e seus minions (quando não são todos a mesma pessoa) parecem, propositalmente, estarem confundindo coisas conceitualmente diferentes como quarentena, quarentena vertical/horizontal, isolamento social, isolamento intermitente, distanciamento social e lockdown!
Alardeia Iamarino, mui cientificamente, sem “ler com calma” o estudo publicado na revista Science e feito por estudiosos de Harvard, fala em “distanciamento e quarentena prolongada ou alternada até 2022” (grifo meu). Porém, not so fast, junior.
Conforme alertou um amigo, pós-doutor em Física, o dr. Vladimir Pershin: “O trabalho da Harvard [que trata de consequências do coronavírus até 2022 ou 2024] descreve vários cenários, mas não diz qual deles vai se realizar. É um artigo técnico, direcionado aos pares e sujeito às críticas e discussões profissionais. Ele não foi escrito para que uns youtubers travestidos de cientistas fiquem assustando a população”. Estamos num campo bastante especulativo, como, muitas vezes, a ciência é. Quaisquer afirmações peremptórias precisam ser debitadas da conta de Iamarino e não dos pesquisadores originais, tanto no primeiro caso como neste.
Do resumo do artigo:
“Projetamos que surtos recorrentes de SARS-CoV-2 no inverno provavelmente ocorrerão após a onda pandêmica inicial mais grave. Na ausência de outras intervenções, uma métrica essencial para o sucesso do distanciamento social é se as capacidades de cuidados [médicos] intensivos são excedidas. Para evitar isso, o distanciamento social prolongado ou intermitente pode ser necessário até 2022. Intervenções adicionais, incluindo capacidade ampliada de cuidados críticos e uma terapêutica eficaz, melhorariam o sucesso do distanciamento intermitente e acelerariam a aquisição da imunidade do rebanho. Estudos sorológicos longitudinais são necessários em caráter de urgência para determinar a extensão e a duração da imunidade à SARS-CoV-2”.
O artigo, conforme dito, faz ciência: especula com base no que sabemos hoje e usa diversos condicionantes. Fala em intervenções ausentes – qual será o quadro se um pujante conjunto de intervenções for utilizada? O cerne do estudo leva a crer na necessidade do distanciamento social prolongado ou intermitente, o que é diferente de quarentena e lockdown. A “extensão e duração” da imunidade não é conhecida e isso pode mudar as figuras e suas consequentes medidas políticas e sociais. O artigo opera sobre o pressuposto que, tal como na influenza, é possível se contaminar e recontaminar com o COVID-19.
Segue:
“However, to mitigate the possibility of resurgences of infection, prolonged or intermittent periods of social distancing may be required”.
Entretanto, para mitigar a possibilidade de ressurgimentos da infecção, períodos prolongados ou intermitentes de distanciamento social podem ser necessários (grifos nossos).
“After the initial pandemic wave, SARS-CoV-2 might follow its closest genetic relative, SARS-CoV-1, and be eradicated by intensive public health measures after causing a brief but intense epidemic”
Após a onda pandêmica inicial, SARS-CoV-2 pode acompanhar seu parente genético mais próximo, SARS-CoV-1, e ser erradicada por meio de medidas de saúde pública intensivas, após causa uma epidemia intensa, mas breve.
O artigo diz que esse cenário é improvável, mas não é impossível. O que também mudaria todas as perspectivas. O modelo adotado no artigo pressupõe que isso não vai ocorrer.
O artigo afirma que “Current COVID-19 case fatality rates are estimated to lie between 0.6% and 3.5%”, ou seja, a taxa de mortalidade varia entre 0,6 e 3,5%. Se for de 0,6%, para que morram 44.000 pessoas no Brasil (o cenário mais otimista traçado por Iamarino), será necessário que aproximadamente 7,5 milhões de pessoas se contaminem apenas no Brasil. O número de contaminados no mundo hoje é de 2 milhões. A uma taxa de mortalidade de 3,5%, são necessários cerca de 1,25 milhão de contaminados.
O artigo prevê que seu modelo se aplica apenas a países de clima temperado:
We used data from the United States to model betacoronavirus transmission in temperate regions and to project the possible dynamics of SARS-CoV-2 infection through the year 2025.
E diferencia os picos de contaminação no inverno e no verão (ainda que ambas estações possam apresentar picos):
“In all modeled scenarios, SARS-CoV-2 was capable of producing a substantial outbreak regardless of establishment time. Winter/spring establishments favored outbreaks with lower peaks, while autumn/winter establishments led to more acute outbreaks (tables S2 to S4 and fig. S7).”
E afirma que para países tropicais seria necessário aplicar outras medidas e outro modelo:
“The transmission dynamics of respiratory illnesses in tropical regions can be much more complex.”
Outro cenário possível é o vírus desaparecer e reaparecer apenas anos depois:
“Low levels of cross immunity from the other betacoronaviruses against SARS-CoV-2 could make SARS-CoV-2 appear to die out, only to resurge after a few years”.
Para os interessados em entender possíveis dinâmicas pós-pandêmicas do vírus, vislumbrando inúmeros cenários possíveis, sem a predileção pelos mais apocalípticos, o artigo realmente é interessante e sua leitura é recomendada.
Em suma e parodiando o assessor econômico de Bill Clinton, “é política, estúpido!”. Dizer que a China vai bem e o mundo livre vai mal, escolher o dado que autoriza a manchete que vaticina milhões de mortos, avaliar negativamente o governo dos EUA, não estabelecer parâmetros de falseação e erroneamente falar em quarentena até 2022 são todas afirmações políticas e não científicas e não importa quanto o fandom raivoso de adolescentes tardios e ignorantes de Átilas, Pirullas etc. urrem e esperneiem. O governo chinês agradece.
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