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Como a história contará o PT pós-16 de março?

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PT bandeira rasgada

Havia uma percepção média da população em relação ao PT antes do mensalão e outra bem diferente pós-mensalão. Até se afirmou que “o partido se corrompeu”, como se corrupção fosse uma doença involitiva transmissível pelo ar, e o partido, contra sua própria vontade e seus valores de aço, tivesse “pegado” o vírus que transforma o honesto em corruptor.

O choque foi ainda maior com a reeleição de Dilma (visto que sua primeira eleição passou inviolável às denúncias que a própria oposição não usou) e com o petrolão. Tudo se aprofundou sem volta com os protestos pelo impeachment, que culminaram no 13 de março.

A própria população, desobedecendo aos sentimentos gerais traçados pela mídia, que praticamente fingiu que não havia organização para o protesto anti petista do dia 13 de março, compareceu em massa ao evento, naquela que foi a maior demonstração popular da história da América Latina.

Pode ser considerado o turning point final, que já vinha se anunciando há tempos, da percepção da população em relação ao Partido dos Trabalhadores, ainda que os acólitos do Partido se obstinem na tese teimosa da “elite branca”, da “classe média golpista” e de “fascistas”, sem nenhuma justificativa.

Apenas três dias depois, algo menor em número, mas incrivelmente mais significativo ocorreu: apenas pouquíssimas horas após a divulgação da posse de Lula como ministro para escapar da prisão, as pessoas, sem nem mesmo um grande movimento de coordenação, resolveram tomar as ruas de dezenas de cidades no Brasil. Pela primeira vez, algo realmente espontâneo.

babá impeachmentO protesto não parecia promissor, até que cerca de uma hora antes, a imprensa teve acesso ao primeiro áudio divulgado das conversas interceptadas de Lula, provando juridicamente o que todos (inclusive os caudatários do petismo) sabiam: que Dilma chamou Lula para assumir um ministério tão somente para livrá-lo da prisão, concedendo-lhe foro privilegiado. As pessoas foram para as ruas e, já fechando vias, ficaram sabendo pelo celular das novas denúncias, que não paravam de aparecer. A manifestação, em locais como a Avenida Paulista, simplesmente não parou por um segundo até o momento.

Apesar do domingo que marcou o fim do sentimento de coadunação, aceitação ou tolerância da maioria da população com o PT, foi o movimento mais espontâneo da história brasileira de três dias depois que jogou a última pá de cal na grande arma que o PT teve sobre seus críticos desde sua fundação: o controle de narrativas.

Ora, o PT se escorou numa narrativa de “defesa dos pobres” em toda a sua história até hoje. O partido das empreiteiras mais ziliardárias do país, do whisky, dos triplex, dos Smith Suplicy, da enorme fortuna sindical, ainda se escuda no discurso de luta de classes, de “ricos contra pobres”, para sobreviver a qualquer acusação, de corrupção a bisbilhotar a internet, de controle da imprensa a comprar Poderes.

Apesar de soar como algo técnico e inútil, um luxo para estudantes de crítica literária e mitologia, é a narrativa que controla comportamentos individuais e coletivos. Em sociedades ágrafas, incapazes de escrever leis estanques, são narrativas míticas, contadas pela tradição oral, que explicam o que é certo e errado, causa e conseqüência, conhecimentos e modelos a serem seguidos ou anatemizados.

lula_rosaAlgo que a psicologia jungiana, escritores de romances seguindo a jornada do herói, teóricos sociais como os da Escola de Frankfurt e, mais importante, publicitários, sobretudo publicitários políticos, sabem muito bem. É por isso que se exige que políticos, que exercem cargos supostamente mais técnicos, tenham também reputação ilibada, não façam sexo oral no Salão Oval, não mandem “os coxinha” tomarem porrada, não mandem enfiarem processos no cu, não mandem enfiarem panelas no cu, não riam de cidades que são “uma merda”: porque são, supostamente, modelos. Arquétipos com uma relação especial com a lei e o imaginário coletivo.

Ainda que creiamos que a sociedade da internet, do Direito, da ciência, da participação política e das universidades tenha abolido os elementos míticos da vida, todas estas coisas são extremamente frágeis perto da narrativa e da tradição oral do cotidiano.

Basta pensar em como Lula e mesmo nulidades carismáticas como Dilma Rousseff e Fernando Haddad conquistam urnas, passam por cima de costumes, decoro, leis e mesmo a lógica mais inapelável tão somente pela força do carisma e de narrativas sobre o social, os pobres, retirar milhões da miséria e muito que se perde nas névoas do mythos – que, por definição, como as musas de Hesíodo, são tanto aletheis quanto pseudeis, tanto verdadeiras quanto falsas. Com uma predominância onipresente das últimas, num partido que praticamente só tem um operário e dois marqueteiros presos.

Ainda assim, é a narrativa que conta: defender o belo, o bom e o justo sem uma historinha para angariar carisma por trás não garante a eleição de ninguém.

Elite-brancaO restolho de apoio que o PT tinha, com o mítico “eu não sabia de nada”, minou-se com a popularidade de Dilma pós-petrolão e pós-crise econômica – ainda que a população ainda nem tenha sido informada de que a crise de 2015-16 foi causada, justamente, pelo modelo de “distribuir renda” e não produzi-la defendido pelo PT e que lhe conquistou votos até o dinheiro acabar.

Restava ainda Lula. Era o fio de esperança usado como bravata (ou seja, como fraqueza apontada como aparente superioridade) pelos petistas: o medo de Lula nas urnas em 2018. O PT, afinal, só encontraria outros candidatos que não Lula na Papuda.

Exatamente por isso, mesmo após ser alvo de um pedido de prisão preventina, Lula ainda relutou em aceitar um ministério para se livrar da cadeia: apesar de judicialmente cair num limbo de entendimento, era óbvio ao povo a sua confissão de culpa e de uso do aparato estatal tão somente para se proteger.

Sem saída, apelaram para um ataque kamikaze: Lula se safaria da prisão, mas teria de dar adeus às eleições de 2018 – ou mais exatamente a qualquer petista ganhar eleições relevantes. O povo não aceitaria (e não aceitará), e não há Bolsa Família, cota, Minha Casa Minha Vida ou Pronatec que compraria mais voto – há, claro, a Lei Rouanet, mas esta só compra artistas fracassados riquinhos e militância só lida pela própria militância.

Basta pensar nas palavras que ainda são ecoadas em dog whistle, os termos para a militância repetir roboticamente: Dilma sofre um “golpe”. Da “elite”, que é “loira de olhos azuis” (um “privilégio” de um percentual bem baixo no Brasil). Da “classe média” que é “fascista”. Dilma teria sido “grampeada”. Por um “Estado policial”. Os “grampos” foram “vazados”. Tudo é “ilegal”. E armou-se um “circo midiático”.

Tudo isto é feito para construção de uma narrativa desesperada – se não há mais esperança para salvar o PT, pensam, que ao menos sirva para atacar quem ataca o PT e para dar uma justificativa “social” (solidária e pseudo-heróica) para insistir tão cabeça-duramente no erro que qualquer varredor de rua já havia percebido.

kadafi-lula-tripoliÉ como o PT, ou melhor, os petistas e futuros ex-petistas envergonhados, tentarão contar a História. Assim como a justiça, é uma palavra que perde importância com H maiúsculo, por não ser a história factual, mas a disciplina escolar de História, que obedece não à verdade e à relevância, mas ao MEC e às ideologias dos ministros da Educação (alguém aí aprendeu na escola o que foi o Gulag? o Holodomor? o genocídio armênio? o Império Otomano, que hoje o Estado Islâmico tenta reconstruir? quem foi Nikita Khruschev? Kim Il-sung? Konstantin Chernenko? Nicolae Ceaușescu? Walter Ulbricht? a diferença entre Ronald Reagan e os campos da morte de Pol-Pot? algo que nos permita entender o que acontece no mundo e qual o resultado das ideologias em voga, incluindo a do PT?).

É por isso que se escoram tanto hoje no mote “Vá estudar História!” – não porque entendam história (com efeito, são os que menos entendem), mas porque, além do vezo marxista-leninista ou trotskysta já cada vez menos disfarçado, é a única área em que ainda têm monopólio para contar narrativas para jovens (sem nunca explicar o que era o Muro de Berlim e por que não comemoram sua queda, claro).

Com efeito, é impossível um petista falar hoje qualquer coisa que não caiba em meia dúzia de bordões criados por atiçadores de militância.

Dilma não sofre um “golpe”. Não existe uma tomada do Estado que compartilhe o Estado com o opositor e inimigo. É por isso que a deposição de João Goulart não configurou ditadura, Mas o AI-5, o Ato Institucional número 5 (e não os atos 1, 2, 3 ou 4) instituiu a ditadura: por deflagrar a concentração de poder, incluindo fim das eleições, impedindo opositores de participarem. Aristocracias, como a inglesa, são uma discussão entre nobres, não poder pela força.

O próprio número do AI-5 mostra que o impeachment de Dilma pedindo novas eleições não tem nada de “golpe”. E que é incrivelmente mais fácil, como Maquiavel o sabia muito bem e não cansou de escrever, de dentro do Estado do que de fora.

lula anos 90Quem está praticando um golpe e concentrando poder, fugindo da lei e usando o Estado para os interesses dos donos de um Partido se confundindo cada vez mais com o próprio Estado é o PT e Dilma ao indicarem Lula para ministro. Isto é golpe, não o impeachment (pedido pelo PT para todos os presidentes eleitos desde 89), que é o pedido de manter as instituições como estão para não serem roubadas por um partido.

Por sinal, isto é uma técnica fascista: o fim do limite entre Estado e um Partido. A velha fórmula de Mussolini: Tutto nello Stato, niente al di fuori dello Stato, nulla contro lo Stato. O PT está querendo tudo dentro do Estado, não está aceitando nada fora do Estado e está ameaçando “incendiar o país” com tudo o que esteja contra o seu poder estatal. Os fascistas eram campeões mundiais em ver “golpistas” em qualquer esquina.

Dilma não foi “grampeada”, como já provou o próprio perito que o PT contratou para investigar. Nada foi “ilegal”, como já atesta até o próprio Rodrigo Janot. O Estado não é “policial”: a polícia não está agindo para perseguir a população, e sim justamente para impedir que se use as instituições para fins particulares.

Quem está ameaçando usar a força física para agredir inocentes nas ruas é o Lula com os seu “monte de peão na frente de casa para bater nos coxinhas”,  afiançando que “se coxinha aparecer, vão tomar tanta porrada que eles nem imaginam”. Para não falar no “exército do Stédile”, mostrando que o MST é uma organização paramilitar (que nem possui CNPJ, mas recebe vultosas verbas do governo) que possui um dono e cujo objetivo único é ameaçar fisicamente quem contraria o PT.

Mais importante: os “grampos” não foram “vazados”. Foram divulgados. A divulgação é o normal, o sigilo que é anormal. E mais do que tudo: o sigilo serve para proteger a investigação, e não (oh, obviedade!), o investigado.

Todas as palavras fortes de Dilma, de blogs petistas (vários deles investigados pela mesma Operação Lava-Jato) e de “especialistas” e “juristas” palpitando em jornais (“estão montando um CIRCO MIDIÁTICO com VAZAMENTOS SELETIVOS para EXECRAÇÃO PÚBLICA!!!!”) podem chamar a atenção de pessoas impressionáveis e com fortes sentimentos apriorísticos pelo PT, mas juridicamente não significam absolutamente nada. O que é, justamente, um “circo midiático”, já que a mídia não explica isto.

Por sinal, isto vindo do mesmo partido que já defendeu os vazamentos expostos no WikiLeaks (como disse Lula, o culpado não é quem divulgou, e sim “quem escreveu a bobagem porque, senão, não teria o escândalo que tem”) e a “execração pública” de Demóstenes Torres, pego negociando vantagens com Carlinhos Cachoeira pelo mesmíssimo mecanismo usado contra Lula. Na ocasião, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que foro é apenas garantia e que as escutas foram legais. Hoje, diz que é “ilegal”.

Basta ser coerente para passar de crente em mentiras de marqueteiros para se tornar anti-petista ortodoxo.

lula fidel castroO que o PT tentará agora é o beijo da morte. Diferentemente de seus parceiros do Foro de São Paulo, que abandonaram com muito mais rapidez o disfarce de ditadura do socialismo do século XXI, o Brasil sob o tacape petista precisava manter mais as aparências – daí a compra de votos pelo mensalão, ao invés de fechamento do Congresso; os contratos hiperfaturados com empreiteiras e obras de infra-estrutura em ditaduras mundo afora; o “controle social” da mídia e da internet, as “Bolsas” para comprar votos; as urnas venezuelanas etc.

Agora que a última salvação jaz em “movimentos sociais” como a CUT, o MST e a UNE, o PT resolveu fazer como seus companheiros abertamente socialistas e partiu para o endurecimento. Não há outra mensagem dotada de sentido capaz de ser extraída da tomada de ruas pela militância do que esta.

Como o PT ainda possui o monopólio do ensino de “História”, resta a lição da Batalha da Rua Maria Antônia a todos. Afinal, tal como a deposição do corrupto e socialista João Goulart gerou a ditadura militar traidora do povo, e todo o discurso que sustenta a esquerda, do PT ao PCO, sempre granjeando-se do fato de terem “lutado contra a ditadura” (mas nunca admitindo que defendiam e ainda defendem ditaduras absurdamente mais violentas [e estas, totalitárias] como as de Cuba, Angola, Irã, Venezuela, Coréia do Norte, China, Rússia ou dos territórios controlados por palestinos no Oriente Médio), também pode-se hoje depor o PT, mas um exército de professores de história, “intelectuais e juristas”, além de artistas fracassados e jornalistas, pode dizer pelos próximos anos para os jovens em formação que Dilma sofreu um golpe fascista, e que é preciso reconstruir o PT e a esquerda com ainda mais força e um vermelho mais sanguinário. De PSOL pra baixo.

Na Rua Maria Antônia, em São Paulo, no começo da ditadura, ficava tanto a Faculdade de Filosofia da USP, com seus cursos de Humanas já sendo aparelhados por comunistas, quanto o Mackenzie (ainda hoje lá), que abrigava o CCC – Comando de Caça aos Comunistas. O confronto, como hoje, era questão de dias.

Após uma festa em que alunos da USP fecharam a rua e cobraram pedágio (passe livre, na época, era coisa de direita), a pancadaria começou – e, retroalimentada como é nas ruas, se tornou perigosíssima. Sem contar os detalhes da história que estão no meu livro, um tiro foi disparado de um dos prédios, matando um estudante. A cavalaria da polícia apareceu para dispersá-los.

Pessoas que nada tinham a ver com a quizomba enxamearam a rua. Logo, na confusão, um estudante aparece morto, pisoteado no corre-corre (até tachas e bolas de gude eram jogadas na rua para derrubar a cavalaria).

Quem enxerga o potencial simbólico (que perduraria por décadas) foi o então líder da UNE, o bonitão José Dirceu. Ao invés de pedir a quietude do luto, o respeito à vida e à morte, seus cupinchas tratam de levantar e carregar o corpo como mostra do que é ser uma vítima da ditadura.

O PT, desde sempre, mesmo aparelhando todo o Estado, a imprensa, a Academia e tendo apoio até de órgãos internacionais, incluindo ditatoriais, ainda fala como se fosse uma eterna oposição minoritária, vítima dos “poderosos” (alguém no país tem mais poder do que o PT?). Porque foi assim que ganhou o poder que vê se esvaindo, hoje.

Hoje, com a CUT, MST e UNE nas ruas, pode estar tão somente buscando o confronto com algum idiota querendo demonstrar sua macheza para se posar de vítima de um golpe fascista, de “pessoas pedindo ditadura militar”, de que agora estão “agredindo pessoas de vermelho” nas ruas e outras balelas.

Se naquela época era o cortejo de um corpo, hoje são manipuladores de vídeos como a Mídia NINJA do Foro do Eixo ou a página Jornalistas Livres do Facebook, sempre pegando cenas de vuco-vuco sem explicação e ocultando as provocações iniciadas por gente uniformizada (quem anda de uniforme partidário nas ruas?) ou as agressões de petistas. Muito menos mostram o que petistas pensam – o que inclui pena de morte para gays e defesa da ditadura militar:

https://www.youtube.com/watch?v=SvgLaHwIxzU

Para não falar em Ciro Gomes, que, ehrr…

https://www.youtube.com/watch?v=SytPS-ncjGI

Enquanto professores de História ainda enxergarem tudo pelo cabresto do marxismo, daqui a algumas décadas nossos filhos serão ensinados sobre como a democrática, popular, linda e fofa presidente Dilma Rousseff foi deposta injustamente por nazistas que precisam aprender uma lição num campo de treinamento socialista. É o que chamo em meu livro de infowar.

Escrevam e espalhem essa história. Essa verdade proibida poderá ser interessante aos jovens contra o único nicho onde o PT ainda não sofre resistência nenhuma – justamente como quem vai comprar cigarro escondido do professor.

A história usualmente era contada pelos vencedores. Hoje, não existe melhor forma de vencer do que o vitimismo de se fazer sempre de perdedor.

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Assuntos:
Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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