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A dialética das fanfics de esquerda

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sakamoto macbook

Manuelzinho, 8 anos, estava na loja de brinquedos de um shopping freqüentado pela elite. De repente, viu uma Barbie e pediu para seu pai comprar. O pai de Manuelzinho, com camiseta da seleção brasileira, gritou autoritariamente com o filho:

— Filho meu brincar de boneca?! Você quer tomar tapa na cara pra deixar de ser viadinho?!

De repente, uma velhinha ao redor, fraquinha e frágil, levantou-se orgulhosa e disse para o macho:

— E por que ele é menino ele não pode brincar do que quiser? Qual o problema de querer brincar com uma boneca rosa? Aposto que você é eleitor do Bolsonaro!

O pai, desnorteado e pego de surpresa, só conseguiu gaguejar que homem é homem e que é eleitor do Bolsonaro sim. Nessa, várias pessoas se juntaram ao redor do representante machista do patriarcado, e começaram a gritar:

— É isso mesmo, se ele é menino, pode gostar de rosa, brincar de boneca e escolher o sexo que quiser e beijar meninos se assim desejar! Quem você pensa que é para determinar do que ele pode ou não pode gostar?!

Algumas pessoas ao redor começaram a aplaudir. Manuelzinho, acuado e chorando, se levantou triunfante e levou a boneca, e ainda beijou um coleguinha na boca no caminho para o caixa. Seu pai, atrapalhado, foi obrigado a comprar a boneca e saiu da loja sob vaias.

Eu estava lá. Eu vi. Foi lindo!

Do fim do ano para cá, histórias como esta pulularam pelo Facebook. Sua verossimilhança (a saber: sua capacidade de parecer real) é sempre ridiculamente negativa. A modinha (tudo de esquerda é modinha) foi tamanha que foi criada uma hilária página no Facebook para reuni-las, a Fanfic de esquerda.

Para quem não sabe o que é uma fanfic, um dos melhores jornalistas da nova safra no Brasil, Cedê Silva, explica:

A TRILOGIA ’50 TONS DE CINZA’ começou como fanfic da saga ‘Crepúsculo’.

‘Fanfic’ é contração de ‘fan fiction’, gênero literário no qual fãs de uma franquia escrevem suas prórias histórias com seus personagens favoritos. Como tudo encontrado com fartura e de graça na internet, a imensa maioria é de qualidade abaixo do sofrível.

’50 Tons de Cinza’ é exemplar nas características associadas às fanfics. Os personagens são rasos, o enredo praticamente inexiste e os diálogos são inacreditáveis. Uma universitária bem chatinha e virgem, Anastasia Steele, encontra por um lance do destino o homem dos seus sonhos: um jovem bilionário, lindo, sarado e misterioso que adora dar presentes caros e tem preferências sexuais um tanto particulares. Não parece incomodá-la muito que o tal Sr. Grey, antes de conhecê-la direito, já se comporte de forma bem obsessiva por ela. Enfim. ’50 Tons de Cinza’ nasceu como um subgênero literário de um produto já pra lá de ruim.

Recentemente o termo ‘fanfic de esquerda’ começou a designar os depoimentos inverossívimeis – cada vez em maior número – nos quais o autor testemunha ou protagoniza sonhos molhados ideológicos. Mais espirituoso que o Homem-Aranha, diz a coisa certa na hora certa; mais impávido que Tony Stark, humilha policiais, militares e reaças em geral. Os autores também dizem ter visto, com espantosa frequência, crianças mais espertas que a Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo – sempre espertas para o lado esquerdo, claro. Há também os relatos de violências amplamente descritas mas sem nenhum outro registro – fotos, vídeos, BOs, ou outras testemunhas. Todas essas narrativas passaram a ser catalogados em uma página essencial, a Fanfic de esquerda.

Você certamente já viu várias fanfics de esquerda. O cachorro da bandana vermelha, a mulher indignada com o peixe cru no restaurante japonês, o editor d’O Globo que perdeu a carteira, a moçada cruzando as pernas no metrô, o desabafo do incrível taxista fã da Dilma, a dona coxinha que deixou de vestir a camisa do Brasil, e um batalhão inteiro de crianças que se comportam como o Armandinho.

A fanfic do metrô é de Daniel Viana. Foi parar na Globo News como se fosse verdade. Dias ANTES da história parar no canal de notícias, o próprio Viana escreveu: “Eu sou um escritor e trabalho com realidade e ficção na escrita de contos e poesias, principalmente através do contato real com as pessoas. Resolvi criar um projeto virtual chamado “Depoimento”, onde um depoimento fictício sobre temas considerados tabus na sociedade pudesse gerar uma discussão, levantando a reflexão e debate sobre o assunto abordado”.

Nesta quinta-feira o advogado Eduardo Goldenberg, fã da Dilma e do Brizola, publicou um depoimento. Ele, com “décadas de réveillon em Copacabana nas costas”, saiu de casa na noite do dia 31 com mais de 1 000 reais em dinheiro (é ele mesmo quem acrescenta: “vá entender”). Pois o humilde ladrão que lhe furtou não apenas devolveu tudo (menos 50 reais para – atenção à sofisticação – “uma” champanhe), como também deixou um bilhete sem um só erro de ortografia.

A história teve grande repercussão, ganhando as páginas, dentre outros, da ‘Folha’ e da BBC Brasil. Só no próprio Facebook tem mais de 6 000 compartilhamentos.

Em novembro de 2015, no 3º Congresso da Juventude do PT, o faraó Lula (o ‪#‎meuamigosecreto‬ que é um homem que vive interferindo no governo de uma mulher, mas jamais foi acusado de “roubo de protagonismo”) pediu à militância que criasse uma corrente de boas notícias. Talvez seja tudo coincidência. Talvez tantos ou todos os relatos sejam mesmo verdadeiros.

A única certeza é que nossa imprensa está tratando com grande seriedade personagens tão fascinantes quanto Anastasia Steele e Christian Grey.

Não é algo inócuo e inofensivo, portanto. É parte da netwar que pauta o jornalismo hardcore. Tem método, tem objetivo, tem um grau de profissionalismo por trás tão grande quanto o dos líderes dos protestos sem líderes que, como não têm líderes, não podem ser culpados quando infiltrados se infiltram em seu protesto – embora estes infiltrados agindo sem líderes só se infiltrem em seus protestos.

As fanfics de esquerda parecem seguir o mesmo destino da esquerda em si, num microcosmo mais tupiniquim e brega.

Se a esquerda começou com a causa da “exploração” da Revolução Industrial, teve de trocar seu foco para a “desigualdade” (forma abstrata de criticar o capitalismo por ter pobres mais ricos do que outros sistemas) e, agora que até a crença na social-democracia dá sinais de exaustão (o povão prefere mesmo é trabalhar e ganhar por si sendo livre do que render loas e obediência ao Estado), a esquerda volta-se ao Marcuse de Eros e a Civilização, concluindo com o mestre: a Revolução não virá dos pobres (muito mais conservadores do que os ricos), e sim dos sexualmente frustrados da classe média.

Todas essas lendas urbanas tratadas como notícia, fato e tratado sociológico partem do mesmo molde, como é obrigatório na esquerda com seu planejamento central para tudo e sua cama de Procrustes para forçar toda a sociedade a uma igualdade. O pensamento precisa ser rigorosamente idêntico.

A premissa é a de que embora o PT, Lula e Dilma tenham cada vez menos popularidade entre o povão (a maior parte do povo quer o impeachment, apenas os militantes mais fanáticos não querem Lula preso, a popularidade de Dilma tem um dígito percentual), ainda assim o povo seria de esquerda.

Fanfic de esquerda: menino de chinelo.

A premissa trai sua falsidade justamente pela falta de verossimilhança. Para qualquer uma das histórias ser verdadeira, elas deveriam ser tão rotineiras que não mereceriam um post no Facebook (como um textão “o ônibus estava lotado hoje” não rende zilhões de compartilhamentos e vira reportagem da BBC). Para elas terem o destaque que têm, é porque só poderiam ser raras. Para se tornarem tão freqüentes, não seriam raras. A própria existência desses posts mostra que as histórias são falsas.

Desde que Mircea Eliade notara uma espécie de estrutura fundamental do pensamento sagrado que se aplica a todas as religiões, um discípulo seu que se tornou muito mais famoso, Joseph Campbell, preferindo a facilidade das reduções freudianas e, com erros e acertos, mostrou uma mesma matriz para todas as narrativas heróicas, da Ilíada e da Odisséia ao Bastian de História Sem Fim ou a Star Wars. É sua teoria do Herói de Mil Faces.

Um dos maiores roteiristas de Hollywood, Christopher Vogler, aplicou os princípios campbellianos para demonstrar as bases de como criar roteiros e histórias interessantes no seu imprescindível livro A Jornada do Escritor – Estrutura Mítica Para Escritores.

Os escritores de fanfics esquerdistas são grandes estudiosos de roteiros capazes de criar histórias emotivas e heróis superando desafios como os estudiosos da narrativa e da imaginação moral?

Bem, ficção de verdade e formadora não é exatamente o forte da esquerda. Exatamente ao contrário: as tais fanfics, tais quais Cinqüenta Tons de Cinza, são apenas galhofas em que o galhofeiro tenta se passar por rei, sem perceber que de rei só possui a nudez.

Os heróis são sempre um pobre, uma mulher, um negro e (se tornou moda) uma criança inocente com um discurso pronto, que quase nenhum pobre, nenhuma mulher, nenhum negro e muito menos uma criança inocente possuem.

As crianças são quase todas descritas, entre vírgulas, como “oito anos”, sem que nunca se chame a atenção ao número repetido e alguém atentar sempre à idade de um filho, sobrinho ou aluno escrevendo como em uma notícia policial: “,oito anos,”.

zediaSeu heroísmo não é uma formação e uma superação, uma decisão difícil numa situação em que o certo e o errado não estão claramente definidos – não é exatamente uma “Escolha de Sofia”. Coadunando-se perfeitamente ao ideário progressista, o heroísmo é fácil, sem esforço. Basta apenas concordar com a modinha do momento.

Para isto, basta ir contra justamente o que a média geral da população (de pobres, mulheres, negros e crianças) acredita, aferrando-se fanaticamente a um modismo que se demonstra ultrapassado. As crianças, por exemplo, são todas caricaturalmente gays ou, ainda mais prafrentex, abraçam a ideologia de gênero, algo praticamente inexistente em toda a história mundial antes desta década.

São meninos de 8 anos que se sentem meninas, que têm vontade de beijar meninos, que querem necessariamente brincar de boneca e casinha (meninas que querem brincar de carrinho e lutinha são inexistentes).

Quando Fátima Bernardes em seu programa passou longos e tediosos minutos ouvindo pais, “especialistas” e celebridades cuja opinião seria relevante por motivo de fama dizendo que meninos podem brincar com coisas de meninas (a tal “Rede Globo conservadora golpista reacionária”) e logo após soltou meninos e meninas para escolherem brinquedos aleatoriamente, e nenhum menino quis brincar de boneca e nem usar rosa, deixando a todos os falantes com uma caprichada cara de bunda, vimos exatamente o contrário das fanfics na vida real.

Fanfic de esquerda: nem menino nem menina - fada.

Meninos e meninas, ainda mais em época de formação de personalidade, querem se aferrar a um grupo. Na verdade, são bastante aguerridos, como qualquer pessoa que assistia ao Show da Xuxa nos anos 80 sabia (a atração é posterior). Preferem usar cores de seu grupo, naturalmente (todos preferem, ou veríamos petistas usando camisetas azuis em protestos da CUT).

As brincadeiras também são explicadas hormonalmente, sem segredos para qualquer um com um pingo de ciência. Meninos querem desenvolver as habilidades combativas (aliás, costumam ser maiores do que as mulheres, o que a ideologia de gênero parece ignorar sumamente), gostam de perigos e desafios. Meninas são delicadas e caseiras. As exceções são, afinal, exceções.

Fanfic de esquerda: caderno Frozen de menina - de gente.

Dados indicam que menos de 0,3% dos adultos americanos são “transgêneros” (o que não impede que um projeto de lei brasileiro destine 5% de vagas para travestis e transexuais no Piauí, o que causa uma certa falta dos dito cujos). Só 68 transexuais no Brasil pediram para usar nome no ENEM (somos 204 milhões de brasileiros). Cruzando tais dados com a sexualidade precoce, então, o número deve ser quase infinitesimal. Para um país com a população brasileira, logo vai faltar criança para dizer que se sente menina quando é menino.

Quando não são crianças, continua sendo o heroísmo barato e fácil. Os vilões são mais caricatos e repetidos do que vilões de videogames antigos, todos se repetindo idênticos por fases sem fim. Nosso amigo Fernando Gouveia listou alguns personagens típicos:

– o reaça altamente caricato que fala algo (ou faz alguma coisa) totalmente sem noção

– o LACRADOR (ou lacradora) que rebate o tal reaça caricato sempre de maneira exemplar, civilizada, ponderada, urbana, elegante etc.

– a criança inocente e pura que de forma intuitiva endossa alguma tese da militância e surpreende até os próprios pais

– a multidão que pode tanto ser silenciada como tb aderir a alguma performance flash-mob engajada, não importa onde ocorra o fato (metrô, ônibus, fila do banco, sala de espera do cirurgião cerebral, funerária etc.)

O discurso que a multidão vê, que foi lindo, é sempre o discurso de auto-afirmação da esquerda em uma época em que nada é mais atrasado e velho do que ser “progressista” (defender rigorosamente o mesmo que os bolcheviques em 1917, mas com um nome apontado para frente). Continuem acreditando, mesmo errado, em bando estão certos.

Ser herói, hoje, não é ser um indivíduo: é dissolver-se no que um coletivo ordena. A matriz das fanfics mostra que são todas pré-fabricadas, saindo de uma linha de produção fordista. O que será que a Escola de Frankfurt, tão preocupada com a fetichização das artes e da cultura pela massificação capitalista, pensaria disso?

As próprias circunstâncias das fanfics as traem. Não existe fanfic que aconteça em favela, em periferia com esgoto a céu aberto, em baile funk no morro onde subiram pra buscar maconha. É sempre no shopping rico (que a esquerda facebookiana freqüenta), no supermercado caro (idem), na escola cuja mensalidade custa o PIB de um país do Leste Europeu. É a esquerda caviar se achando o máximo por dar bom dia pra faxineira. Numa recente, fizeram um coitado de um açougueiro no Carrefour chamar nossa presidente de “Dilma Vana Rousseff”.

Fanfic de esquerda do Carrefour: Dilma Vana Rousseff.

Essa turma escrevedora de fanfic critica a sociedade, que é patriarcal, machista, homofóbica e racista, para em suas ficções pintar toda a sociedade como eleitora de Maria do Rosário, leitora de Karl Marx, Gilles Deleuze e Judith Butler, fã de Leonardo Sakamoto e concordante com os siricuticos de Jean Wyllys e Pablo Capilé. E seus detratores, claros, são loiros e de olhos azuis, o mais comum no Brasil.

Em sua teoria, o meio cria o homem, no mais fatalista dos determinismos. Em seus contos fingidos, os pobres e as vítimas estão constantemente superando seu meio. O que é exatamente o que a direita tenta explicar para a esquerda há mais de 2 séculos sem lograr êxito.

Não percebem, finalmente, que é o meio dos comunistinhas de Facebook que cria estas fantasias. Eles, sim, são frutos do meio Vila-Madalena-curso-de-Humanas-maconha-blogueiro-da-Folha-música-de-vagabundo-feminismo-mocreiosfera-progressista-amiguinhos-que-obedecem-o-professor-e-se-acham-críticos-por-isso. Estes, definitivamente, nunca superam o seu meio determinista, determinando o que pensarão e o que obedecerão.

São, afinal, como sempre no que se refere conclusões tiradas de narrativas de momento (e não modelos que tiram sabedoria de tradições para repensar o futuro, como os estudos de textos que vão de Northrop Frye a René Girard), modinhas.

Toda a esquerda, afinal, é sempre modinha. Tanto que hoje, incapaz de defender algo do pior governo da história do país, virou um boboca meme hedonista de auto-afirmação.

Post Scriptum: O meio é tão determinante para o pensamento, no Brasil, que o esquerdismo reinante nestas terras teve de depender de uma população bastante emburrecida, ao contrário de países civilizados por serem conservadores, como Inglaterra, Canadá, Áustria ou Japão. Tanto assim que mesmo uma fanfic de sátira, galhofando das historietas para boi dormir e socialista de iPhone acreditar, foi tratada como verdadeira até mesmo pelos não-esquerdistas, como foi o caso da hilária fanfic de Renata Red (e isto porque ela termina com todo mundo morrendo num desastre aéreo, e é narrada em primeira pessoa). Definitivamente, a esperança para um país tão burro está enterrada na imbecilidade coletiva.

E ria bastante na página Fanfic de esquerda.

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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern é escritor, analista político, palestrante e tradutor. Seu trabalho tem foco nas relações entre linguagem e poder e em construções de narrativas. É autor do livro "Por trás da máscara: do passe livre aos black blocs". Tem passagens pela Jovem Pan, RedeTV!, Gazeta do Povo e Die Weltwoche, na Suiça.

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